terça-feira, 4 de novembro de 2014

Texto de Ruy Ventura e foto de Carlos Sargedas


O SENHOR DAS CHAGAS
E O CERNE DA ARRÁBIDA 


(ARRÁBIDA SACRA - 3)

Ruy Ventura




(conclusão dos textos anteriores)


            Da atenção à Providência legível em vários símbolos existentes em Sesimbra, não podemos alhear a devoção ao Senhor das Chagas. Será bom recordarmos a sua imagem em procissão, no dia 4 de Maio, data em que se recorda, mais do que o seu achamento na Pedra Alta, a descoberta do seu braço que não ardia, porque era fonte de esperança enquanto materialização do membro superior do Deus dos Exércitos. Com a Sua mão, era esse braço que dava a vitória ao povo de Israel, simbolizando a força, o poder, o socorro prometido, a protecção e a justiça. A chegada do Senhor à praia, como porto seguro, mostra-nos o mar como caminho escolhido por Deus, onde a caminhada não deixa pegadas, como refere o salmo 77. Recorda-nos sobretudo o Santo Lenho, essa “madeira de misericórdia” que, segundo conta a Lenda Dourada, nasceu de um ramo da árvore do Paraíso plantado por Seth sobre o túmulo de Adão e, depois de muitas andanças, acabou por vogar sobre as águas, aportando de modo milagroso à costa israelita, pois tinha como destino ser a cruz onde morreria para ressuscitar Jesus de Nazaré.
            Para entendermos totalmente a Arrábida como região sagrada, centrada em Sesimbra e na sua devoção ao Senhor das Chagas, é preciso lembrar a imagem dolorosa e florida que percorre anualmente as ruas da vila nesse dia. Tudo se passa no centro desse eixo traçado entre duas Memórias; e, para que haja liberdade na saudade, como queria frei Agostinho, é preciso descobrirmos no seu centro a esperança. Ouçamos Teixeira de Pascoaes, que via no frade de Ponte da Barca o mais alto valor da nossa poesia e, na Arrábida, o “Altar da Saudade”: “A Arrábida é o Horeb da Saudade, o monte sagrado onde ela aparece, a vez primeira, encarnada no seu divino ser. Esparsa em névoa // melancólica e amorosa em Bernardim, Luís de Camões dá-lhe o sentido cósmico e profundo que em Frei Agostinho da Cruz se diviniza. A névoa antiga condensou-se no espectro camoniano da Natura, para amanhecer, em perfeita aurora espiritual, sobre os ermos místicos da Arrábida. § A criatura elevou-se, enfim, ao Criador. Da lembrança material em que o Universo se modela, saltou a luz da Esperança que o redime. A Esperança é Deus, como a Lembrança é o homem e todas as cousas…
            A cruz do Senhor das Chagas é dolorosa e florida. Falando ou não da Arrábida, Pascoaes também a explica, sem trair, quanto a mim, a tradição portuguesa, que aprofunda anagogicamente: “O sentimento saudoso da Divindade imprime no nosso Cristianismo um colorido alegre e triste que o destaca. Jesus aparece-nos, espectral // e plástico, pregado num madeiro em flor, com raízes no âmago da terra. Pela flor evolada em perfume, a árvore cruz atinge o infinito Azul; pela raiz, penetra na escuridão subterrânea. Nas ramagens dos seus braços abertos está o Amor crucificado. A Cruz florescida em esperança e enraizada na lembrança material, vede o próprio vulto da Saudade, cingindo num abraço o amor-sacrifício que redime. A união da esperança à lembrança, do espírito divino às suas formas decaídas ou materiais, porque, decaindo, adquire presença tangível, capaz de ser possuída. […]”.
            Imagem terrestre da Jerusalém celeste, a Arrábida, centrada em Sesimbra, teria necessariamente de ter no seu centro uma cruz dolorida e gloriosa. Trata-se de um símbolo com duas faces, sintético. Lembro que esse signo máximo do cristianismo representa, na leitura do escritor católico inglês G. K. Chesterton, o mistério e a saúde: “embora tenha no centro uma colisão e uma contradição, pode estender os seus quatro braços para sempre, sem alterar a forma. Porque tem um paradoxo, no centro, pode crescer sem mudar”. É, também, uma via luminosa e de testemunho, de sangue e de redenção, árvore da vida, cruz-caminho que nos leva à luz e, igualmente, uma analogia de totalização espacial, da união dos contrários e dos quatro elementos.
            A cruz de Sesimbra, de onde pende uma impressionante escultura flamenga de Cristo dando o último suspiro, quando sai em procissão mostra-nos a dor e o alento, o sofrimento e a esperança, a morte e a ressurreição, a paixão e a aleluia. Totalizando o espaço, exprime e totaliza também a vivência dele que, como referi, exige uma assunção corporal e espiritual. É essa a via arrábida expressa pelo seu território como um todo, como um sistema natural, cultural e cultual. Iniciando-se na Pedra Alta ou nos arredores do Portinho, o percurso tem sempre a mesma meta poliédrica: da vitória sobre o mal em Sant’ Iago matamouros à Consolação do Castelo, ganhando o alento do Espírito, peregrinando como propõe a figura mítica do filho de Zabedeu, lutando e dando testemunho como São Sebastião; da vitória sobre os instintos, conseguida por Santa Margarida, à salvação atingida nos “arrabaldes” do Paraíso, onde se vive a experiência do Amor Divino na construção de uma sapiência que chega a Deus nunca desprezando os Homens e a bondade a exercer no mundo.
            De certo modo, tudo isto está presente na imagem do Senhor das Chagas saindo em procissão. Talvez por isso seja frequente ver no seu cortejo delegações de outras terras da região, prestando homenagem ao seu suserano. Às Chagas, à sua madeira/lenho, à sua cruz de Quaresma e de Maio, de Paixão e descoberta, de dor e redenção (que é ressurreição e ascensão), todos se rendem. Talvez porque Sesimbra e o seu vale sejam o centro, o eixo simbólico, arborescente, de todo o território arrábido, que vai de Memória a Memória, da Concepção à Cruz e à eternização, do inferior ao Superior ou Supremo.

*

            “Senhora do Tempo”, como diria Teresa Salgueiro, a árvore que a Arrábida nos oferece é residência da “claridade celeste”, da “luz extasiada”, da “Pureza” e da “Paz”, sendo ao mesmo tempo revelação/recordação de um mundo sensível ainda primordial e criação de um universo supra-sensível, como escreveu Sebastião da Gama. “Serra toda pintada de Esperança”, é expressão da divindade, antecâmara do Éden, como afirmou o mesmo autor nela nascido. “Nobreza”, “força” e “sabedoria” dão-lhe a seiva que leva essa pequena semente (o “grão de mostarda” evangélico?) a erguer-se como “tronco imenso” e, depois, como “mastro” no “centro de um barco” onde todos navegamos e, se bem entendo estas palavras da cantora, ergueremos os braços ao Senhor da História e de toda a criação. Assim fazendo, passaremos da existência à vida.
            Vencedora do abismo, a serra de que Sesimbra é centro foi-se apresentando ao longo de séculos enquanto espaço sublimado cuja sacralidade é um poliedro de que desconhecemos ainda a totalidade das faces. Eixo, campo aberto e largo, finisterra, deserto, fronteira, atalaia, lugar alto, templo, refúgio, protecção, escada, purificação, despojamento, coluna, lugar de cruzamento e de síntese, altar, mãe, árvore, a Arrábida é acima de tudo um eixo misterioso de Portugal.
            O confronto com esse mistério obrigou muitos dos que aqui moraram ou por aqui passaram a exprimir a sua estranheza, o seu temor, a sua reverência a esta imagem espelhada do divino. Todos discursos se angustiaram perante a sua incerteza sublime. Ao longo de mais de dois mil anos, houve apenas aproximações – e o que escrevo não é diferente. Usou-se de toda a força contra a nuvem sagrada, de modo a dissipá-la, mas o livro escrito e a escrever terá sempre um carácter paradoxal, porque o cerne da Arrábida é indizível, dizendo-se apenas num silêncio aberto e contemplativo.

            Houve quem, subindo a escada celestial, visse na Arrábida a manifestação do fogo que nada pode apagar, do sopro que não cessa, da sombra acolhedora, da altitude imaterial, da síntese entre a esperança e a lembrança. Há quem, profanando a serra, a veja apenas como lugar de turismo, fonte de lucro, palco de espectáculos, origem de matérias-primas, terreno de afirmação egoísta ou hedonista. Espero, sinceramente, que o caminho dos sesimbrenses e de quantos me lêem se encontre com o pensamento de frei Agostinho da Cruz, radicado nas palavras do Livro da Sabedoria. Se assim for, e assim será, verão toda esta parcela de Portugal como um espelho, como uma imagem espelhada, porque “na grandeza e na beleza das criaturas / se contempla, por analogia, o seu Criador” (Sb 13, 5).

(publicado no jornal Raio de Luz, de Sesimbra)

quarta-feira, 1 de outubro de 2014



SEBASTIÃO DA GAMA E OS BRASÕES DE SESIMBRA

(ARRÁBIDA SACRA - 2)

Ruy Ventura


(continuação)      

            Nos poemas arrábidos de frei Agostinho da Cruz percebe-se que toda a elevação espiritual se estrutura entre a Natureza/Mundo, a Palavra/Poesia e Deus. Interpretando-os e lendo a serra que conhecia como poucos, Sebastião da Gama percebeu que o território estendido entre as duas ermidas da Memória (Campo, Cabo e Serra) só se pode entender em profundidade nessa tríade evidenciada na poesia do frade franciscano ou noutra, mais clara, que ele verteu nos títulos dos três livros que publicou na sua curta vida de vinte e sete anos. Campo Aberto corresponde à Natureza, à criação, mas também ao mundo habitado e social, onde todos nós existimos e tentamos viver, abrindo-nos e esvaziando-nos das contingências, afastando-nos dos instintos e da corrupção. Cabo da Boa Esperança exprime a finisterra, a cessação de um mundo natural, por obra da palavra e da poesia, ou seja, pela acção criativa colaborante com Deus na produção de uma “pintura” que traga para junto de nós o Supremo Pintor; por isso o Cabo não é apenas fim da terra, mas início da esperança. Por fim, a montanha, Serra-Mãe expressando a matriz, o tronco, a matéria gerada e geradora, mas sobretudo o acidente natural que exige o movimento de assunção, incitando os seres humanos a subir a escada do Paraíso e a aproximar-se de Deus.
            Arrisco a ir mais longe. A Arrábida ofereceu aos dois poetas de Deus um espelho onde puderam ver as três virtudes teologais, como vias de salvação pessoal e do mundo: no campo, ou seja, na natureza e na sociedade, o exercício da Caridade, do Amor Divino transformado em Amor à criação, humana e natural; no cabo, o encontro com a Esperança, a boa Esperança, aquela que nos faz olhar o futuro enquanto emanação sagrada; e, por fim, na serra, o encontro com a Fé, nesse lugar onde se oferece a liberdade, o melhor manjar que, nas palavras de frei Agostinho, “Depende de trazer o pensamento / Aceso na divina saudade”.
            Se natureza, palavra e divindade não se podem separar, o mesmo se podendo dizer, arrabidamente falando, do campo, do cabo e da serra, com expressão no exercício das três virtudes, creio que o equilíbrio na vivência de um espaço numinoso como este não deve separar o sagrado da religiosidade e da religião que, como se sabe, são conceitos bem diferentes. A Arrábida, como um todo, e os espaços que lhe são similares, é prova disso e incita-nos à vivência e ao exercício integral de tudo quanto venho afirmando. Como referiu o papa Francisco na sua exortação pastoral Evangelii Gaudium, a diversidade cultural não é uma ameaça à unidade, porque o Espírito Santo “suscita uma abundante e diversificada riqueza de dons e, ao mesmo, tempo, constrói uma unidade que nunca é uniformidade, mas multiforme harmonia que atrai”. Dentro dessa diversidade, situa-se a chamada “piedade popular” ou “religiosidade tradicional” que, não sendo “vazia de conteúdos”, “descobre-os e exprime-os mais pela via simbólica do que pelo uso da razão instrumental”.
            Neste domínio, a Arrábida ocupa uma posição exemplar, enquanto território gerador de um sistema natural, cultual e cultural onde coabitam pacificamente vivências livres e sincréticas do sagrado, práticas de devoção popular e ritos religiosos com visível enquadramento institucional. É certo: não se pode esquecer a profanação que, nos últimos 180 anos, já maculou bastante a integridade deste espaço onde uma vivência equilibrada nos leva a sentir “Deus respirar / No ar, flores, árvores, em tudo”, como escreveu Hans Christian Andersen em 1866. Temos no entanto de trabalhar todos, cooperando, para que seja possível travar a pressão urbanística, o turismo desrespeitador, a actividade industrial que não respeite a sua natureza, o abandono e vandalismo de algum património artístico e arquitectónico, o apagamento de tradições ancestrais, a reprodução de formas bastardas e pouco sérias de ritos antigos… Volto, por isso, ao princípio.

*

            Recordo: se traçarmos entre as duas ermidas da Memória uma linha recta e a dividirmos ao meio, perceberemos que no centro está o vale de Sesimbra, descendo do castelo e da antiga Aldeia das Antas (hoje Santana) até às areias da praia. Como já expliquei, é nesse espaço que se situa o cerne da Arrábida, nesse “lugar onde se não morre” e onde uma “brisa contínua, forte, sempre da terra para o mar”, descendo a avenida da Liberdade, “divide a vila ao meio” no lugar onde um ribeiro corria unindo as duas metades da Piscosa, como notou filósofo António Telmo. Ao fundo dessa artéria situa-se a capela da Misericórdia, onde o povo da Arrábida venera o Senhor Jesus das Chagas. Sei bem que a toponímia é recente, mas por artes que só Deus conhece parece ter dado corpo às palavras de frei Agostinho da Cruz: “Não há manjar melhor que liberdade”, desde que o nosso pensamento se acenda “na divina saudade”, ou seja, na recordação e na esperança geradas pelo Amor Divino presente em Cristo crucificado e chagado. A resposta a essa manifestação divina leva à metanóia, à transformação da vontade humana. Só assim nos libertaremos da “crueza” do mundo, modificando-nos por completo: “Claros sinais de amor, oh saudade! / Minha consolação, minha firmeza, / Chagas do meu Senhor, redenção minha”.
            Há sinais em Sesimbra de que esta mensagem terá sido entendida. Na heráldica, nas artes e nos ritos, ela está presente. Uma investigação aprofundada consegue ligar de forma indissolúvel a intensidade do culto e o título do Senhor das Chagas à presença dos franciscanos na região a partir da década de trinta do século XVI e, também, a um papel activo dos donatários da região nessa época. Foram esses membros da família Lencastre que fizeram instalar os discípulos de São Francisco de Assis na serra. Foram também eles que, segundo dizem os documentos e as tradições, refundaram Sesimbra na Ribeira, enquanto sede municipal, paroquial e assistencial.
            A devoção às Chagas de Cristo está no centro da espiritualidade franciscana, bem como a adoração do Santo Nome de Jesus e do Santíssimo Sacramento da Eucaristia; basta pensarmos na estigmatização do fundador da Ordem dos Frades Menores, que levou o irmão de Assis a ser equiparado ao Filho de Maria, alter Christus como São Sebastião (curiosamente o orago da igreja onde, em Sesimbra, se situava a sede dos Terceiros Franciscanos). Nesta terra de pescadores, as chagas de Cristo foram olhadas como imagem do Amor Divino ao homem dado, como expressão do sofrimento compassivo e humanado de um Deus criador que desce à sua criatura, consolando-a nas suas tribulações. Terá sido essa a lição ensinada pelos frades que aqui, decerto, pregariam.
            Sesimbra, no entanto, nesse tempo recuado dos séculos XVI e XVII, ver-se-ia enriquecida com outro significado das Chagas de Cristo. Se olharmos com atenção o brasão que hoje ornamenta, discreto, a fachada nascente do antigo hospital da Misericórdia, perceberemos que nesse lugar uma acção purificadora, erudita, resolveu ligar as cinco feridas de Jesus ao destino mítico, providencial, do nosso país. A peça heráldica é contemporânea da edificação da capela da Santa Casa e da igreja matriz de Sant’ Iago. Recorda que o escudo de Portugal tem impressas as cinco chagas por manifestação/sugestão divina concedida a D. Afonso Henriques na batalha de Ourique, ocorrida, segundo a lenda, exactamente no dia do orago da paróquia sesimbrense, um dos Filhos do Trovão, Jacob ou Sant’ Iago Maior, como lhe chamamos. O brasão é extravagante, parece ter anomalias; foi, no entanto, esculpido assim, de propósito, para nos apontar, em simultâneo, o Senhor Jesus das Chagas (protector dos pescadores e de Sesimbra) e as Chagas de Cristo (protectoras de Portugal). Sobre ele, enrola-se uma serpente, mordendo a própria cauda: trata-se do timbre do escudo nacional e representa a serpente salvífica que Moisés afixou num poste, prenúncio da crucificação salvadora de Jesus no Calvário; mostra ao mesmo tempo, na sua forma circular, a união entre o mundo terrestre do ofídio e o universo celeste representado pela forma circular.
            Esta heráldica religiosa, de síntese entre o escudo nacional afonsino e as armas chagadas de Cristo, surge de algum modo replicada e esclarecida no brasão antigo de Sesimbra. Três elementos o constituem: no centro, um grande castelo com três torres, cinco janelas e uma porta, todas abertas; no quinto inferior, o que parece ser um galgo correndo e olhando para trás; saindo da torre cimeira e coroando o escudo, uma águia enorme com os pés no eirado mas prestes a levantar voo. Não é tempo de esmiuçar tudo quanto significam. Basta-me dizer-vos que o galgo ou lebréu é o símbolo da fidelidade e da assistência divina, mas sobretudo, se lido à luz da cultura erudita e mística do Renascimento, uma imagem do “enviado” profetizado por Dante no Purgatório da Divina Comédia, do “veltro”, ou seja, do percursor da segunda vinda do Filho de Deus para que seja derrotado o Anti-Cristo. Devo referir que o castelo, como bem viu Santa Teresa de Ávila, discípula de São Pedro de Alcântara (o mais conhecido e ignorado frade da nossa Arrábida), representa a protecção mas, sobretudo, a transcendência, imagem terrestre da Jerusalém celeste. A águia é, por seu lado, um atributo de São João Evangelista e até de Cristo, uma ave solar que ousa olhar de frente o astro-rei sem queimar os olhos, um símbolo da contemplação do Verbo que se fez Homem.
            Verifica-se, mais uma vez, a proposta de um itinerário de ascensão ao cume físico e espiritual, tal como em tantos outros lugares, estruturas e textos ditados pela Arrábida. O brasão de Sesimbra, sendo municipal, indicia que alguém – dotado de uma vasta cultura sagrada – via esta terra como lugar onde se manifestava uma rara espiritualidade. Esta peça e as armas existentes na Misericórdia mostram que o providencialismo nacionalista e universalista, acentuado no âmbito da mística de Avis, teve expressão, secreta e sagrada, neste eixo da Arrábida.


(publicado no jornal "Raio de Luz" - continua)


quinta-feira, 18 de setembro de 2014



Frei Agostinho da Cruz (1540-1619)
numa aguarela de João Salvador Martins
(colecção de RV)

Ermida da Memória, no santuário da Senhora da Pedra Mua, no cabo Espichel.

Ermida da Memória, no "convento velho" da Arrábida.




Os dois santuários principais do território arrábido: 
Senhora da Pedra Mua 
e Senhora da Arrábida
(fotos de RV)


"Pedra Alta" em Sesimbra:
o local onde, segundo a lenda, aportou 
a imagem do Senhor Jesus das Chagas
(foto de Carminda Proença)



Imagem do Senhor Jesus das Chagas
antes da procissão de 4/5/2014
pelas ruas de Sesimbra.
(fotos de RV)

Mapa do território sagrado da Arrábida
com o seu eixo central
(Ventura, 2014)

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Ruy Ventura (texto) e Luís Rendas (foto)







ARRÁBIDA, O SENHOR DAS CHAGAS
E A CENTRALIDADE ESPIRITUAL
DE SESIMBRA
(1ª parte)

 

            Apresentei no passado dia 24 de Julho, na igreja da Misericórdia de Sesimbra, uma conferência intitulada “A Arrábida, o Senhor das Chagas e a Centralidade Espiritual de Sesimbra”. Nesse acto de cultura e de culto, tive a honra de ser acompanhado pela dra. Maria Barroso Soares (que declamou poemas de frei Agostinho da Cruz, de Sebastião da Gama e do padre Manuel Marques) e pela cantora Teresa Salgueiro (que cantou uma das elegias do santo frade arrábido e um poema de sua autoria). Encantaram-nos, cativaram-nos, enalteceram-nos e, por isso, o agradecimento que lhes dirigi será sempre insuficiente; só Deus lhes saberá retribuir…

            A conferência não teria sido, todavia, o que foi sem os contributos de quem a organizou e a presença de quantos tornaram escassa a centena e meia de lugares disponíveis. Bem hajam, pois, o padre Rodrigo Mendes (verdadeiro motor deste evento e do concerto de Teresa Salgueiro, a 25/7, na renovada fortaleza), a Câmara Municipal e a Santa Casa da Misericórdia. Muito agradeço ainda a presença calorosa do senhor bispo D. Gilberto Canavarro dos Reis, de monsenhor José Lobato e de outros membros do presbitério diocesano (entre eles, os padres Manuel Silva e Luís de Matos Ferreira, de Sesimbra e de Azeitão), dos presidentes da Cáritas e da Fundação Pro Dignitate, dos amigos e colegas de profissão e de investigação, dos sesimbrenses e amigos de Sesimbra e da Arrábida que, mais uma vez, mostraram quanto amam a sua terra e a sua cultura. A sua presença honrou-me e comoveu-me, dizendo que a esperança é possível.

            Apesar de já ter publicado trechos da minha investigação sobre a sacralidade da Arrábida, nomeadamente no ensaio “O Eixo e a Árvore” (editado em Fevereiro deste ano com fundos estatais pela Apenas Livros, de Lisboa), e de estar para breve a edição em publicações científicas de estudos sobre a geografia sacra da serra, os aspectos históricos da devoção ao Senhor das Chagas e a poesia religiosa de Sebastião da Gama, julgo que a melhor maneira de sublinhar a minha gratidão será devolver aos sesimbrenses e arrábidos pelo menos uma parcela do texto que li em vésperas de Sant’ Iago Maior no santuário das Chagas e de Sesimbra, antecipando o livro que se vai construindo. Publico hoje a primeira parte, que terá continuação.

 

*

            Quem desce a Sesimbra, desce a uma terra sacralizada. Embora, de há algumas décadas a esta parte, se venha considerando apenas como estância de turismo, dela tinham outro entendimento os homens que a viam como base ou entreposto de navegação e pesca, que nela fabricaram o garum na época romana, que aí levantaram uma ermida a São Sebastião e hospitais ao Santo Espírito. Primeiro Castelo e depois Ribeira, esta vila está no centro de um vasto território numinoso que se integrava totalmente na sua circunscrição e administração municipal até ao fatídico ano de 1759. Quem traçar com régua uma linha entre os dois santuários femininos mais significativos da região – a Senhora do Cabo e a Senhora da Arrábida –, verificará isso mesmo. O vale de Sesimbra, que sobe da praia até às proximidades de Santana, está rigorosamente no centro, corta a meio esse segmento de recta onde, talvez por artes de geomancia, da Idade do Ferro ao século XVI, se implantaram vários marcos religiosos. É, portanto, a cabeça, a capital, dessa cordilheira sagrada a que os homens ao longo da história foram dando vários nomes e que nós hoje chamamos Arrábida.

            Essa centralidade é mais evidente quando ligamos as duas ermidas da Memória e verificamos o que está no centro; a homonímia dos dois pequeníssimos oratórios que assinalam locais de manifestação do sagrado exprime a ligação simbólica entre dois lugares santos, decerto anterior ao cristianismo, reforçada pela dupla lenda de Hildebrando, na qual se diz que esse mercador inglês assistiu do seu barco à subida na Pedra Mua de uma burra carregando uma imagem mariana, antes de ser protagonista da descoberta do sítio escolhido por outra imagem da Virgem Maria para ficar. Se nos deslocarmos um pouco mais para sul veremos, também, que entre os lugares onde se cultuou o Senhor dos Navegantes (na Chã do mesmo nome) e onde se reza ao Senhor dos Aflitos (no eremitério franciscano) está Sesimbra, essa vila de pescadores ladeada e protegida por dois rochedos sagrados (os morros do Arcanzil, dois “arcanjos” petrificados, diz-se), cada um deles sinalizando santuários pré-cristãos situados nas falésias (um deles fenício ou púnico, na Lapa da Cova). Sesimbra, no seu vale, entre o Castelo, Santana e a Ribeira, é assim uma terra do meio, o eixo de uma parcela de mundo que na Antiguidade se denominava Akra Barbarion ou Cempsicum Iugum. No centro dela situa-se uma pequena capela onde há quase cinco séculos se venera o Senhor Jesus das Chagas. É uma espécie de sucessora do oratório existente no topo poente do Campo da Misericórdia e, sobretudo, o espelho dessa Pedra Alta que, segundo indiciam palavras do padre Carlos Veríssimo, foi o primeiro altar da localidade, ou seja, um lugar de culto ancestral.

            A cronologia do processo de sacralização deste território é difícil de determinar, mas decerto imemorial. Se há indícios materiais que parecem pôr o seu início na época das primeiras sedentarizações neolíticas, inequívocas só as evidências toponímicas e artefactuais situadas na proto-história, num período em que se acentua – por via fenícia/púnica – o carácter mediterrânico e semita da sua cultura e da sua língua. Terá sido nessa época que, de um modo mais claro, o vazio de um “campo aberto” (br br’) e a altitude de uma “serra grande” (hr rb da) se impuseram aos autóctones e viajantes. Passaram então a ser valorizados como “campo de oração” (br brk), como “serra dos áugures” (hr bad) ou “monte onde se presta culto” (hr obd), completando e contrapondo a finisterra, “falésia alta/funda” ou “falésia do Inferno”, o Espichel (shpi sh’l). A serra, em sentido lato, foi assim sacralizada no seu todo, como templo ou santuário total, sem edifícios cultuais. Era esse o paradigma cultural e cultual semita, no qual os templos se situavam ao ar livre ou em acidentes naturais significativos, em geral espaços “vasto[s] e descoberto[s], – a área sagrada – não se confinando ao sítio restrito onde as divindades se encontravam representadas, como acontecia entre os egípcios, gregos ou romanos”, como afirma Mário Varela Gomes. Tal leitura do território (e da paisagem, poderia dizer anacronicamente) não mais se desfez, progredindo ao longo de mais de vinte séculos. Sofreu reinterpretações, mutações e enriquecimentos, mas as várias aparências civilizacionais encontraram sempre expressão para a sua essência ancestral. O processo não está ainda terminado. Creio que nunca o estará.

            A actividade humana desenvolvida no território arrábido não impediu a sacralização do espaço barbárico e dos seus elementos, embora fosse valorizado como lugar alto e deserto. Estruturou-se uma sábia hierarquização dos lugares. Inclusive nos locais onde decorria com maior intensidade a vivência económica e mundana, nunca se terá dispensado a presença do divino. Tal equilíbrio não se deve estranhar, pois nas sociedades primigénias, como é sabido, o sagrado e o profano não se podem separar nem dissociar por completo. Como refere José Fernández Arenas, nas culturas antigas o divino é a única realidade válida, pois nelas o humano ou terreno é tão só o seu espelho ou imagem, o seu substituto.

            Sesimbra, enquanto povoação mais importante, é um bom exemplo dessa repartição. Basta pensarmos na sua Idade Média. Estruturou-se em dois núcleos distintos e complementares, com funções diferentes: no alto de um cabeço aplainado, situavam-se o castelo e a vila amuralhada, sede municipal e paroquial; junto da praia, na ribeira, desenvolvia-se a actividade pesqueira e comercial. Nenhum desses espaços dispensou a presença de Deus, fosse pela presença de edifícios paroquiais, fosse pela edificação de estruturas devocionais ou assistenciais. Também os núcleos mais importantes, embora secundários, e as vias mais significativas, em parte relacionadas com rotas de peregrinação, foram protegidas por locais de culto. Assim foi entre o século XII e os séculos XVI-XVII. Penso que não terá sido muito diferente nos largos séculos anteriores.

            Não é, assim, possível entender a sacralidade da cordilheira da Arrábida sem atendermos às suas características físicas e aos movimentos de confronto, afastamento e aproximação suscitados, ao longo da sua extensa ocupação humana, pelos elementos naturais que a definem e constituem. Cortina montanhosa – entre as altas falésias do Cabo Espichel e as portas da cidade de Setúbal, entre Alfarim e Sesimbra, Azeitão e o Portinho –, destaca-se enquanto elevação que vence, em simultâneo, o oceano (a sul e poente) e as terras baixas e arenosas (a norte e nascente). Nela se opõem, sem se excluírem, o mar e a terra, a praia e a montanha, o alto e o baixo, a segurança e a insegurança, o fixo e o movediço, a elevação e a submersão, a ascensão e a descensão, a proximidade e a distância em relação aos astros e ao empíreo. Se considerarmos a geografia humana além da física, teremos ainda a oposição entre o povoado e o inabitado que, de um ponto de vista simbólico e religioso, se transforma num recontro divisor, inquietante e expansivo entre a vida religiosa, dirigida à divindade, e o labor e lazer existenciais, traduzidos em práticas exclusivamente mundanas.

            A Arrábida é, portanto, um espaço que exige escolhas, por vezes radicais, traduzidas em movimentos interiores e exteriores. Tal confronto, sempre dilemático, teve expressão no entendimento da paisagem e, sobretudo, no povoamento do território. Resultou na presença humana sedentária, desde épocas muito recuadas, sobretudo proto-históricas, nalguns cumes estrategicamente privilegiados e na preservação de um longo espaço escassamente habitado, quase desértico, correspondendo a montes e planaltos com menores ou inexistentes condições de habitabilidade e/ou de mais difícil acesso, logo bastante significativos de um ponto de vista ritual e simbólico. As praias foram deixadas às comunidades piscatórias e a outras actividades marítimas ou mercantis. A Deus (ou aos deuses) deixou-se tudo o resto – o que não inviabilizou o estabelecimento na “pré-Arrábida” de habitats menos significativos, geralmente associados a vias de comunicação ou de peregrinação, decerto muito antigas.

            Se os caminhos de ligação entre as localidades principais ou de acesso aos santuários deram origem a pequenas povoações e quintas (muitas delas protegidas por lugares de culto secundários, ou a eles associadas), as rotas de subida/acesso a Deus fizeram nascer construções religiosas que consagraram a deslocação/peregrinação aos lugares sagrados e, sobretudo, indicaram e sublinharam a subida sempre exigente, como via privilegiada de acesso à divindade, não só para comunicar com ela, mas para tornar também possível uma aproximação em relação ao Paraíso, ou seja, à santidade. Essas vias foram e são-nos indicadas pelas lendas correntes na região (talvez parcelas de um grande mito original) e, também, pela ubiquação de vários santuários aí existentes ou de que há vestígios materiais ou imateriais.

 
(publicado no jornal RAIO DE LUZ, de Sesimbra; continua)