quarta-feira, 1 de outubro de 2014



SEBASTIÃO DA GAMA E OS BRASÕES DE SESIMBRA

(ARRÁBIDA SACRA - 2)

Ruy Ventura


(continuação)      

            Nos poemas arrábidos de frei Agostinho da Cruz percebe-se que toda a elevação espiritual se estrutura entre a Natureza/Mundo, a Palavra/Poesia e Deus. Interpretando-os e lendo a serra que conhecia como poucos, Sebastião da Gama percebeu que o território estendido entre as duas ermidas da Memória (Campo, Cabo e Serra) só se pode entender em profundidade nessa tríade evidenciada na poesia do frade franciscano ou noutra, mais clara, que ele verteu nos títulos dos três livros que publicou na sua curta vida de vinte e sete anos. Campo Aberto corresponde à Natureza, à criação, mas também ao mundo habitado e social, onde todos nós existimos e tentamos viver, abrindo-nos e esvaziando-nos das contingências, afastando-nos dos instintos e da corrupção. Cabo da Boa Esperança exprime a finisterra, a cessação de um mundo natural, por obra da palavra e da poesia, ou seja, pela acção criativa colaborante com Deus na produção de uma “pintura” que traga para junto de nós o Supremo Pintor; por isso o Cabo não é apenas fim da terra, mas início da esperança. Por fim, a montanha, Serra-Mãe expressando a matriz, o tronco, a matéria gerada e geradora, mas sobretudo o acidente natural que exige o movimento de assunção, incitando os seres humanos a subir a escada do Paraíso e a aproximar-se de Deus.
            Arrisco a ir mais longe. A Arrábida ofereceu aos dois poetas de Deus um espelho onde puderam ver as três virtudes teologais, como vias de salvação pessoal e do mundo: no campo, ou seja, na natureza e na sociedade, o exercício da Caridade, do Amor Divino transformado em Amor à criação, humana e natural; no cabo, o encontro com a Esperança, a boa Esperança, aquela que nos faz olhar o futuro enquanto emanação sagrada; e, por fim, na serra, o encontro com a Fé, nesse lugar onde se oferece a liberdade, o melhor manjar que, nas palavras de frei Agostinho, “Depende de trazer o pensamento / Aceso na divina saudade”.
            Se natureza, palavra e divindade não se podem separar, o mesmo se podendo dizer, arrabidamente falando, do campo, do cabo e da serra, com expressão no exercício das três virtudes, creio que o equilíbrio na vivência de um espaço numinoso como este não deve separar o sagrado da religiosidade e da religião que, como se sabe, são conceitos bem diferentes. A Arrábida, como um todo, e os espaços que lhe são similares, é prova disso e incita-nos à vivência e ao exercício integral de tudo quanto venho afirmando. Como referiu o papa Francisco na sua exortação pastoral Evangelii Gaudium, a diversidade cultural não é uma ameaça à unidade, porque o Espírito Santo “suscita uma abundante e diversificada riqueza de dons e, ao mesmo, tempo, constrói uma unidade que nunca é uniformidade, mas multiforme harmonia que atrai”. Dentro dessa diversidade, situa-se a chamada “piedade popular” ou “religiosidade tradicional” que, não sendo “vazia de conteúdos”, “descobre-os e exprime-os mais pela via simbólica do que pelo uso da razão instrumental”.
            Neste domínio, a Arrábida ocupa uma posição exemplar, enquanto território gerador de um sistema natural, cultual e cultural onde coabitam pacificamente vivências livres e sincréticas do sagrado, práticas de devoção popular e ritos religiosos com visível enquadramento institucional. É certo: não se pode esquecer a profanação que, nos últimos 180 anos, já maculou bastante a integridade deste espaço onde uma vivência equilibrada nos leva a sentir “Deus respirar / No ar, flores, árvores, em tudo”, como escreveu Hans Christian Andersen em 1866. Temos no entanto de trabalhar todos, cooperando, para que seja possível travar a pressão urbanística, o turismo desrespeitador, a actividade industrial que não respeite a sua natureza, o abandono e vandalismo de algum património artístico e arquitectónico, o apagamento de tradições ancestrais, a reprodução de formas bastardas e pouco sérias de ritos antigos… Volto, por isso, ao princípio.

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            Recordo: se traçarmos entre as duas ermidas da Memória uma linha recta e a dividirmos ao meio, perceberemos que no centro está o vale de Sesimbra, descendo do castelo e da antiga Aldeia das Antas (hoje Santana) até às areias da praia. Como já expliquei, é nesse espaço que se situa o cerne da Arrábida, nesse “lugar onde se não morre” e onde uma “brisa contínua, forte, sempre da terra para o mar”, descendo a avenida da Liberdade, “divide a vila ao meio” no lugar onde um ribeiro corria unindo as duas metades da Piscosa, como notou filósofo António Telmo. Ao fundo dessa artéria situa-se a capela da Misericórdia, onde o povo da Arrábida venera o Senhor Jesus das Chagas. Sei bem que a toponímia é recente, mas por artes que só Deus conhece parece ter dado corpo às palavras de frei Agostinho da Cruz: “Não há manjar melhor que liberdade”, desde que o nosso pensamento se acenda “na divina saudade”, ou seja, na recordação e na esperança geradas pelo Amor Divino presente em Cristo crucificado e chagado. A resposta a essa manifestação divina leva à metanóia, à transformação da vontade humana. Só assim nos libertaremos da “crueza” do mundo, modificando-nos por completo: “Claros sinais de amor, oh saudade! / Minha consolação, minha firmeza, / Chagas do meu Senhor, redenção minha”.
            Há sinais em Sesimbra de que esta mensagem terá sido entendida. Na heráldica, nas artes e nos ritos, ela está presente. Uma investigação aprofundada consegue ligar de forma indissolúvel a intensidade do culto e o título do Senhor das Chagas à presença dos franciscanos na região a partir da década de trinta do século XVI e, também, a um papel activo dos donatários da região nessa época. Foram esses membros da família Lencastre que fizeram instalar os discípulos de São Francisco de Assis na serra. Foram também eles que, segundo dizem os documentos e as tradições, refundaram Sesimbra na Ribeira, enquanto sede municipal, paroquial e assistencial.
            A devoção às Chagas de Cristo está no centro da espiritualidade franciscana, bem como a adoração do Santo Nome de Jesus e do Santíssimo Sacramento da Eucaristia; basta pensarmos na estigmatização do fundador da Ordem dos Frades Menores, que levou o irmão de Assis a ser equiparado ao Filho de Maria, alter Christus como São Sebastião (curiosamente o orago da igreja onde, em Sesimbra, se situava a sede dos Terceiros Franciscanos). Nesta terra de pescadores, as chagas de Cristo foram olhadas como imagem do Amor Divino ao homem dado, como expressão do sofrimento compassivo e humanado de um Deus criador que desce à sua criatura, consolando-a nas suas tribulações. Terá sido essa a lição ensinada pelos frades que aqui, decerto, pregariam.
            Sesimbra, no entanto, nesse tempo recuado dos séculos XVI e XVII, ver-se-ia enriquecida com outro significado das Chagas de Cristo. Se olharmos com atenção o brasão que hoje ornamenta, discreto, a fachada nascente do antigo hospital da Misericórdia, perceberemos que nesse lugar uma acção purificadora, erudita, resolveu ligar as cinco feridas de Jesus ao destino mítico, providencial, do nosso país. A peça heráldica é contemporânea da edificação da capela da Santa Casa e da igreja matriz de Sant’ Iago. Recorda que o escudo de Portugal tem impressas as cinco chagas por manifestação/sugestão divina concedida a D. Afonso Henriques na batalha de Ourique, ocorrida, segundo a lenda, exactamente no dia do orago da paróquia sesimbrense, um dos Filhos do Trovão, Jacob ou Sant’ Iago Maior, como lhe chamamos. O brasão é extravagante, parece ter anomalias; foi, no entanto, esculpido assim, de propósito, para nos apontar, em simultâneo, o Senhor Jesus das Chagas (protector dos pescadores e de Sesimbra) e as Chagas de Cristo (protectoras de Portugal). Sobre ele, enrola-se uma serpente, mordendo a própria cauda: trata-se do timbre do escudo nacional e representa a serpente salvífica que Moisés afixou num poste, prenúncio da crucificação salvadora de Jesus no Calvário; mostra ao mesmo tempo, na sua forma circular, a união entre o mundo terrestre do ofídio e o universo celeste representado pela forma circular.
            Esta heráldica religiosa, de síntese entre o escudo nacional afonsino e as armas chagadas de Cristo, surge de algum modo replicada e esclarecida no brasão antigo de Sesimbra. Três elementos o constituem: no centro, um grande castelo com três torres, cinco janelas e uma porta, todas abertas; no quinto inferior, o que parece ser um galgo correndo e olhando para trás; saindo da torre cimeira e coroando o escudo, uma águia enorme com os pés no eirado mas prestes a levantar voo. Não é tempo de esmiuçar tudo quanto significam. Basta-me dizer-vos que o galgo ou lebréu é o símbolo da fidelidade e da assistência divina, mas sobretudo, se lido à luz da cultura erudita e mística do Renascimento, uma imagem do “enviado” profetizado por Dante no Purgatório da Divina Comédia, do “veltro”, ou seja, do percursor da segunda vinda do Filho de Deus para que seja derrotado o Anti-Cristo. Devo referir que o castelo, como bem viu Santa Teresa de Ávila, discípula de São Pedro de Alcântara (o mais conhecido e ignorado frade da nossa Arrábida), representa a protecção mas, sobretudo, a transcendência, imagem terrestre da Jerusalém celeste. A águia é, por seu lado, um atributo de São João Evangelista e até de Cristo, uma ave solar que ousa olhar de frente o astro-rei sem queimar os olhos, um símbolo da contemplação do Verbo que se fez Homem.
            Verifica-se, mais uma vez, a proposta de um itinerário de ascensão ao cume físico e espiritual, tal como em tantos outros lugares, estruturas e textos ditados pela Arrábida. O brasão de Sesimbra, sendo municipal, indicia que alguém – dotado de uma vasta cultura sagrada – via esta terra como lugar onde se manifestava uma rara espiritualidade. Esta peça e as armas existentes na Misericórdia mostram que o providencialismo nacionalista e universalista, acentuado no âmbito da mística de Avis, teve expressão, secreta e sagrada, neste eixo da Arrábida.


(publicado no jornal "Raio de Luz" - continua)