domingo, 29 de outubro de 2017



Em defesa do património religioso 

– agir é preciso... E depressa!

Foi há um par de anos. Entrei na loja de uns missionários em Fátima, uma das maiores do centro da localidade. Falando com um familiar de uma peça de arte sacra antiga a precisar de conservação competente (hoje felizmente bem restaurada, com critérios éticos e científicos), fui prontamente interpelado pela empregada do estabelecimento. Solícita, sem grande noção das conveniências, interrompeu a conversa e atirou, de arrancada: “Se quiser, temos um senhor muito jeitoso que a põe como nova...”
Percebi que a senhora me confundira com um sacerdote. Fiquei estupefacto, respondi de forma evasiva, mas fiquei a pensar: “Quem resiste a estas abordagens se não tiver ética, educação, juízo, pudor ou um bispo com mão de ferro e sabedoria de um diplomata? Quem?”
Multiplicam-se pelo nosso país casos de raspagem e repinte de esculturas e retábulos das nossas paróquias, de vandalismo aplicado a telas, tábuas e pinturas murais centenárias. São peças importantes do património espiritual dos crentes e, também, elementos inalienáveis da nossa memória coletiva. São obras de arte e criações inspiradas e, como tal, merecem o mais escrupuloso respeito. Outra coisa não diz, aliás, o Direito Canónico. A situação a que chegámos é todavia muito grave, mesmo que vejamos alguns exemplos de boas práticas, pontuais e minoritários, que não escondem a “selva” que por aí vai, do Algarve ao Alto Minho, com exemplos recentes de perigoso retrocesso.
Enquanto tivermos como fiéis depositários do património religioso pessoas que, à parte a sua competência pastoral, revelam (como autarcas deslumbrados ou construtores civis siderados) uma ânsia incontrolável, querendo “deixar obra” construída, esculpida ou pintada a todo o custo, continuaremos a assistir atónitos à destruição do nosso património artístico e espiritual. Enquanto se manifestar um insaciável voluntarismo que olha para as obras de arte como objectos utilitários sem valor intrínseco e não como manifestações materiais, visíveis, de Deus connosco, continuaremos a testemunhar um vandalismo cujos agentes, ainda por cima, se apresentam com ares de esteticistas ou maquilhadoras de bairro pobre. Enquanto quem de direito não agir com rapidez, ciência e firmeza, parando os desmandos que violam as leis do País e o Código do Direito Canónico, ou deixando mesmo de colaborar com eles, continuaremos a multiplicar os lamentos por um património perdido, quiçá para sempre.
Não será tempo de todos nós – investigadores, conservadores-restauradores, museólogos, amantes da arte, sacerdotes com sabedoria, fiéis com ética e estética, simples amantes do património – fazermos algo além dos simples comentários no “feicebuque”? Se o não fizermos, talvez seja tarde. E não valerá a pena tecermos mais tarde um rol de lamentações.

Artigo publicado nos jornais "Diário do Alentejo" (Beja), "Alto Alentejo" (Portalegre) e "Raio de Luz" (Sesimbra).

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Texto de Ruy Ventura e foto de Carlos Sargedas


O SENHOR DAS CHAGAS
E O CERNE DA ARRÁBIDA 


(ARRÁBIDA SACRA - 3)

Ruy Ventura




(conclusão dos textos anteriores)


            Da atenção à Providência legível em vários símbolos existentes em Sesimbra, não podemos alhear a devoção ao Senhor das Chagas. Será bom recordarmos a sua imagem em procissão, no dia 4 de Maio, data em que se recorda, mais do que o seu achamento na Pedra Alta, a descoberta do seu braço que não ardia, porque era fonte de esperança enquanto materialização do membro superior do Deus dos Exércitos. Com a Sua mão, era esse braço que dava a vitória ao povo de Israel, simbolizando a força, o poder, o socorro prometido, a protecção e a justiça. A chegada do Senhor à praia, como porto seguro, mostra-nos o mar como caminho escolhido por Deus, onde a caminhada não deixa pegadas, como refere o salmo 77. Recorda-nos sobretudo o Santo Lenho, essa “madeira de misericórdia” que, segundo conta a Lenda Dourada, nasceu de um ramo da árvore do Paraíso plantado por Seth sobre o túmulo de Adão e, depois de muitas andanças, acabou por vogar sobre as águas, aportando de modo milagroso à costa israelita, pois tinha como destino ser a cruz onde morreria para ressuscitar Jesus de Nazaré.
            Para entendermos totalmente a Arrábida como região sagrada, centrada em Sesimbra e na sua devoção ao Senhor das Chagas, é preciso lembrar a imagem dolorosa e florida que percorre anualmente as ruas da vila nesse dia. Tudo se passa no centro desse eixo traçado entre duas Memórias; e, para que haja liberdade na saudade, como queria frei Agostinho, é preciso descobrirmos no seu centro a esperança. Ouçamos Teixeira de Pascoaes, que via no frade de Ponte da Barca o mais alto valor da nossa poesia e, na Arrábida, o “Altar da Saudade”: “A Arrábida é o Horeb da Saudade, o monte sagrado onde ela aparece, a vez primeira, encarnada no seu divino ser. Esparsa em névoa // melancólica e amorosa em Bernardim, Luís de Camões dá-lhe o sentido cósmico e profundo que em Frei Agostinho da Cruz se diviniza. A névoa antiga condensou-se no espectro camoniano da Natura, para amanhecer, em perfeita aurora espiritual, sobre os ermos místicos da Arrábida. § A criatura elevou-se, enfim, ao Criador. Da lembrança material em que o Universo se modela, saltou a luz da Esperança que o redime. A Esperança é Deus, como a Lembrança é o homem e todas as cousas…
            A cruz do Senhor das Chagas é dolorosa e florida. Falando ou não da Arrábida, Pascoaes também a explica, sem trair, quanto a mim, a tradição portuguesa, que aprofunda anagogicamente: “O sentimento saudoso da Divindade imprime no nosso Cristianismo um colorido alegre e triste que o destaca. Jesus aparece-nos, espectral // e plástico, pregado num madeiro em flor, com raízes no âmago da terra. Pela flor evolada em perfume, a árvore cruz atinge o infinito Azul; pela raiz, penetra na escuridão subterrânea. Nas ramagens dos seus braços abertos está o Amor crucificado. A Cruz florescida em esperança e enraizada na lembrança material, vede o próprio vulto da Saudade, cingindo num abraço o amor-sacrifício que redime. A união da esperança à lembrança, do espírito divino às suas formas decaídas ou materiais, porque, decaindo, adquire presença tangível, capaz de ser possuída. […]”.
            Imagem terrestre da Jerusalém celeste, a Arrábida, centrada em Sesimbra, teria necessariamente de ter no seu centro uma cruz dolorida e gloriosa. Trata-se de um símbolo com duas faces, sintético. Lembro que esse signo máximo do cristianismo representa, na leitura do escritor católico inglês G. K. Chesterton, o mistério e a saúde: “embora tenha no centro uma colisão e uma contradição, pode estender os seus quatro braços para sempre, sem alterar a forma. Porque tem um paradoxo, no centro, pode crescer sem mudar”. É, também, uma via luminosa e de testemunho, de sangue e de redenção, árvore da vida, cruz-caminho que nos leva à luz e, igualmente, uma analogia de totalização espacial, da união dos contrários e dos quatro elementos.
            A cruz de Sesimbra, de onde pende uma impressionante escultura flamenga de Cristo dando o último suspiro, quando sai em procissão mostra-nos a dor e o alento, o sofrimento e a esperança, a morte e a ressurreição, a paixão e a aleluia. Totalizando o espaço, exprime e totaliza também a vivência dele que, como referi, exige uma assunção corporal e espiritual. É essa a via arrábida expressa pelo seu território como um todo, como um sistema natural, cultural e cultual. Iniciando-se na Pedra Alta ou nos arredores do Portinho, o percurso tem sempre a mesma meta poliédrica: da vitória sobre o mal em Sant’ Iago matamouros à Consolação do Castelo, ganhando o alento do Espírito, peregrinando como propõe a figura mítica do filho de Zabedeu, lutando e dando testemunho como São Sebastião; da vitória sobre os instintos, conseguida por Santa Margarida, à salvação atingida nos “arrabaldes” do Paraíso, onde se vive a experiência do Amor Divino na construção de uma sapiência que chega a Deus nunca desprezando os Homens e a bondade a exercer no mundo.
            De certo modo, tudo isto está presente na imagem do Senhor das Chagas saindo em procissão. Talvez por isso seja frequente ver no seu cortejo delegações de outras terras da região, prestando homenagem ao seu suserano. Às Chagas, à sua madeira/lenho, à sua cruz de Quaresma e de Maio, de Paixão e descoberta, de dor e redenção (que é ressurreição e ascensão), todos se rendem. Talvez porque Sesimbra e o seu vale sejam o centro, o eixo simbólico, arborescente, de todo o território arrábido, que vai de Memória a Memória, da Concepção à Cruz e à eternização, do inferior ao Superior ou Supremo.

*

            “Senhora do Tempo”, como diria Teresa Salgueiro, a árvore que a Arrábida nos oferece é residência da “claridade celeste”, da “luz extasiada”, da “Pureza” e da “Paz”, sendo ao mesmo tempo revelação/recordação de um mundo sensível ainda primordial e criação de um universo supra-sensível, como escreveu Sebastião da Gama. “Serra toda pintada de Esperança”, é expressão da divindade, antecâmara do Éden, como afirmou o mesmo autor nela nascido. “Nobreza”, “força” e “sabedoria” dão-lhe a seiva que leva essa pequena semente (o “grão de mostarda” evangélico?) a erguer-se como “tronco imenso” e, depois, como “mastro” no “centro de um barco” onde todos navegamos e, se bem entendo estas palavras da cantora, ergueremos os braços ao Senhor da História e de toda a criação. Assim fazendo, passaremos da existência à vida.
            Vencedora do abismo, a serra de que Sesimbra é centro foi-se apresentando ao longo de séculos enquanto espaço sublimado cuja sacralidade é um poliedro de que desconhecemos ainda a totalidade das faces. Eixo, campo aberto e largo, finisterra, deserto, fronteira, atalaia, lugar alto, templo, refúgio, protecção, escada, purificação, despojamento, coluna, lugar de cruzamento e de síntese, altar, mãe, árvore, a Arrábida é acima de tudo um eixo misterioso de Portugal.
            O confronto com esse mistério obrigou muitos dos que aqui moraram ou por aqui passaram a exprimir a sua estranheza, o seu temor, a sua reverência a esta imagem espelhada do divino. Todos discursos se angustiaram perante a sua incerteza sublime. Ao longo de mais de dois mil anos, houve apenas aproximações – e o que escrevo não é diferente. Usou-se de toda a força contra a nuvem sagrada, de modo a dissipá-la, mas o livro escrito e a escrever terá sempre um carácter paradoxal, porque o cerne da Arrábida é indizível, dizendo-se apenas num silêncio aberto e contemplativo.

            Houve quem, subindo a escada celestial, visse na Arrábida a manifestação do fogo que nada pode apagar, do sopro que não cessa, da sombra acolhedora, da altitude imaterial, da síntese entre a esperança e a lembrança. Há quem, profanando a serra, a veja apenas como lugar de turismo, fonte de lucro, palco de espectáculos, origem de matérias-primas, terreno de afirmação egoísta ou hedonista. Espero, sinceramente, que o caminho dos sesimbrenses e de quantos me lêem se encontre com o pensamento de frei Agostinho da Cruz, radicado nas palavras do Livro da Sabedoria. Se assim for, e assim será, verão toda esta parcela de Portugal como um espelho, como uma imagem espelhada, porque “na grandeza e na beleza das criaturas / se contempla, por analogia, o seu Criador” (Sb 13, 5).

(publicado no jornal Raio de Luz, de Sesimbra)

quarta-feira, 1 de outubro de 2014



SEBASTIÃO DA GAMA E OS BRASÕES DE SESIMBRA

(ARRÁBIDA SACRA - 2)

Ruy Ventura


(continuação)      

            Nos poemas arrábidos de frei Agostinho da Cruz percebe-se que toda a elevação espiritual se estrutura entre a Natureza/Mundo, a Palavra/Poesia e Deus. Interpretando-os e lendo a serra que conhecia como poucos, Sebastião da Gama percebeu que o território estendido entre as duas ermidas da Memória (Campo, Cabo e Serra) só se pode entender em profundidade nessa tríade evidenciada na poesia do frade franciscano ou noutra, mais clara, que ele verteu nos títulos dos três livros que publicou na sua curta vida de vinte e sete anos. Campo Aberto corresponde à Natureza, à criação, mas também ao mundo habitado e social, onde todos nós existimos e tentamos viver, abrindo-nos e esvaziando-nos das contingências, afastando-nos dos instintos e da corrupção. Cabo da Boa Esperança exprime a finisterra, a cessação de um mundo natural, por obra da palavra e da poesia, ou seja, pela acção criativa colaborante com Deus na produção de uma “pintura” que traga para junto de nós o Supremo Pintor; por isso o Cabo não é apenas fim da terra, mas início da esperança. Por fim, a montanha, Serra-Mãe expressando a matriz, o tronco, a matéria gerada e geradora, mas sobretudo o acidente natural que exige o movimento de assunção, incitando os seres humanos a subir a escada do Paraíso e a aproximar-se de Deus.
            Arrisco a ir mais longe. A Arrábida ofereceu aos dois poetas de Deus um espelho onde puderam ver as três virtudes teologais, como vias de salvação pessoal e do mundo: no campo, ou seja, na natureza e na sociedade, o exercício da Caridade, do Amor Divino transformado em Amor à criação, humana e natural; no cabo, o encontro com a Esperança, a boa Esperança, aquela que nos faz olhar o futuro enquanto emanação sagrada; e, por fim, na serra, o encontro com a Fé, nesse lugar onde se oferece a liberdade, o melhor manjar que, nas palavras de frei Agostinho, “Depende de trazer o pensamento / Aceso na divina saudade”.
            Se natureza, palavra e divindade não se podem separar, o mesmo se podendo dizer, arrabidamente falando, do campo, do cabo e da serra, com expressão no exercício das três virtudes, creio que o equilíbrio na vivência de um espaço numinoso como este não deve separar o sagrado da religiosidade e da religião que, como se sabe, são conceitos bem diferentes. A Arrábida, como um todo, e os espaços que lhe são similares, é prova disso e incita-nos à vivência e ao exercício integral de tudo quanto venho afirmando. Como referiu o papa Francisco na sua exortação pastoral Evangelii Gaudium, a diversidade cultural não é uma ameaça à unidade, porque o Espírito Santo “suscita uma abundante e diversificada riqueza de dons e, ao mesmo, tempo, constrói uma unidade que nunca é uniformidade, mas multiforme harmonia que atrai”. Dentro dessa diversidade, situa-se a chamada “piedade popular” ou “religiosidade tradicional” que, não sendo “vazia de conteúdos”, “descobre-os e exprime-os mais pela via simbólica do que pelo uso da razão instrumental”.
            Neste domínio, a Arrábida ocupa uma posição exemplar, enquanto território gerador de um sistema natural, cultual e cultural onde coabitam pacificamente vivências livres e sincréticas do sagrado, práticas de devoção popular e ritos religiosos com visível enquadramento institucional. É certo: não se pode esquecer a profanação que, nos últimos 180 anos, já maculou bastante a integridade deste espaço onde uma vivência equilibrada nos leva a sentir “Deus respirar / No ar, flores, árvores, em tudo”, como escreveu Hans Christian Andersen em 1866. Temos no entanto de trabalhar todos, cooperando, para que seja possível travar a pressão urbanística, o turismo desrespeitador, a actividade industrial que não respeite a sua natureza, o abandono e vandalismo de algum património artístico e arquitectónico, o apagamento de tradições ancestrais, a reprodução de formas bastardas e pouco sérias de ritos antigos… Volto, por isso, ao princípio.

*

            Recordo: se traçarmos entre as duas ermidas da Memória uma linha recta e a dividirmos ao meio, perceberemos que no centro está o vale de Sesimbra, descendo do castelo e da antiga Aldeia das Antas (hoje Santana) até às areias da praia. Como já expliquei, é nesse espaço que se situa o cerne da Arrábida, nesse “lugar onde se não morre” e onde uma “brisa contínua, forte, sempre da terra para o mar”, descendo a avenida da Liberdade, “divide a vila ao meio” no lugar onde um ribeiro corria unindo as duas metades da Piscosa, como notou filósofo António Telmo. Ao fundo dessa artéria situa-se a capela da Misericórdia, onde o povo da Arrábida venera o Senhor Jesus das Chagas. Sei bem que a toponímia é recente, mas por artes que só Deus conhece parece ter dado corpo às palavras de frei Agostinho da Cruz: “Não há manjar melhor que liberdade”, desde que o nosso pensamento se acenda “na divina saudade”, ou seja, na recordação e na esperança geradas pelo Amor Divino presente em Cristo crucificado e chagado. A resposta a essa manifestação divina leva à metanóia, à transformação da vontade humana. Só assim nos libertaremos da “crueza” do mundo, modificando-nos por completo: “Claros sinais de amor, oh saudade! / Minha consolação, minha firmeza, / Chagas do meu Senhor, redenção minha”.
            Há sinais em Sesimbra de que esta mensagem terá sido entendida. Na heráldica, nas artes e nos ritos, ela está presente. Uma investigação aprofundada consegue ligar de forma indissolúvel a intensidade do culto e o título do Senhor das Chagas à presença dos franciscanos na região a partir da década de trinta do século XVI e, também, a um papel activo dos donatários da região nessa época. Foram esses membros da família Lencastre que fizeram instalar os discípulos de São Francisco de Assis na serra. Foram também eles que, segundo dizem os documentos e as tradições, refundaram Sesimbra na Ribeira, enquanto sede municipal, paroquial e assistencial.
            A devoção às Chagas de Cristo está no centro da espiritualidade franciscana, bem como a adoração do Santo Nome de Jesus e do Santíssimo Sacramento da Eucaristia; basta pensarmos na estigmatização do fundador da Ordem dos Frades Menores, que levou o irmão de Assis a ser equiparado ao Filho de Maria, alter Christus como São Sebastião (curiosamente o orago da igreja onde, em Sesimbra, se situava a sede dos Terceiros Franciscanos). Nesta terra de pescadores, as chagas de Cristo foram olhadas como imagem do Amor Divino ao homem dado, como expressão do sofrimento compassivo e humanado de um Deus criador que desce à sua criatura, consolando-a nas suas tribulações. Terá sido essa a lição ensinada pelos frades que aqui, decerto, pregariam.
            Sesimbra, no entanto, nesse tempo recuado dos séculos XVI e XVII, ver-se-ia enriquecida com outro significado das Chagas de Cristo. Se olharmos com atenção o brasão que hoje ornamenta, discreto, a fachada nascente do antigo hospital da Misericórdia, perceberemos que nesse lugar uma acção purificadora, erudita, resolveu ligar as cinco feridas de Jesus ao destino mítico, providencial, do nosso país. A peça heráldica é contemporânea da edificação da capela da Santa Casa e da igreja matriz de Sant’ Iago. Recorda que o escudo de Portugal tem impressas as cinco chagas por manifestação/sugestão divina concedida a D. Afonso Henriques na batalha de Ourique, ocorrida, segundo a lenda, exactamente no dia do orago da paróquia sesimbrense, um dos Filhos do Trovão, Jacob ou Sant’ Iago Maior, como lhe chamamos. O brasão é extravagante, parece ter anomalias; foi, no entanto, esculpido assim, de propósito, para nos apontar, em simultâneo, o Senhor Jesus das Chagas (protector dos pescadores e de Sesimbra) e as Chagas de Cristo (protectoras de Portugal). Sobre ele, enrola-se uma serpente, mordendo a própria cauda: trata-se do timbre do escudo nacional e representa a serpente salvífica que Moisés afixou num poste, prenúncio da crucificação salvadora de Jesus no Calvário; mostra ao mesmo tempo, na sua forma circular, a união entre o mundo terrestre do ofídio e o universo celeste representado pela forma circular.
            Esta heráldica religiosa, de síntese entre o escudo nacional afonsino e as armas chagadas de Cristo, surge de algum modo replicada e esclarecida no brasão antigo de Sesimbra. Três elementos o constituem: no centro, um grande castelo com três torres, cinco janelas e uma porta, todas abertas; no quinto inferior, o que parece ser um galgo correndo e olhando para trás; saindo da torre cimeira e coroando o escudo, uma águia enorme com os pés no eirado mas prestes a levantar voo. Não é tempo de esmiuçar tudo quanto significam. Basta-me dizer-vos que o galgo ou lebréu é o símbolo da fidelidade e da assistência divina, mas sobretudo, se lido à luz da cultura erudita e mística do Renascimento, uma imagem do “enviado” profetizado por Dante no Purgatório da Divina Comédia, do “veltro”, ou seja, do percursor da segunda vinda do Filho de Deus para que seja derrotado o Anti-Cristo. Devo referir que o castelo, como bem viu Santa Teresa de Ávila, discípula de São Pedro de Alcântara (o mais conhecido e ignorado frade da nossa Arrábida), representa a protecção mas, sobretudo, a transcendência, imagem terrestre da Jerusalém celeste. A águia é, por seu lado, um atributo de São João Evangelista e até de Cristo, uma ave solar que ousa olhar de frente o astro-rei sem queimar os olhos, um símbolo da contemplação do Verbo que se fez Homem.
            Verifica-se, mais uma vez, a proposta de um itinerário de ascensão ao cume físico e espiritual, tal como em tantos outros lugares, estruturas e textos ditados pela Arrábida. O brasão de Sesimbra, sendo municipal, indicia que alguém – dotado de uma vasta cultura sagrada – via esta terra como lugar onde se manifestava uma rara espiritualidade. Esta peça e as armas existentes na Misericórdia mostram que o providencialismo nacionalista e universalista, acentuado no âmbito da mística de Avis, teve expressão, secreta e sagrada, neste eixo da Arrábida.


(publicado no jornal "Raio de Luz" - continua)