quinta-feira, 18 de setembro de 2014



Frei Agostinho da Cruz (1540-1619)
numa aguarela de João Salvador Martins
(colecção de RV)

Ermida da Memória, no santuário da Senhora da Pedra Mua, no cabo Espichel.

Ermida da Memória, no "convento velho" da Arrábida.




Os dois santuários principais do território arrábido: 
Senhora da Pedra Mua 
e Senhora da Arrábida
(fotos de RV)


"Pedra Alta" em Sesimbra:
o local onde, segundo a lenda, aportou 
a imagem do Senhor Jesus das Chagas
(foto de Carminda Proença)



Imagem do Senhor Jesus das Chagas
antes da procissão de 4/5/2014
pelas ruas de Sesimbra.
(fotos de RV)

Mapa do território sagrado da Arrábida
com o seu eixo central
(Ventura, 2014)

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Ruy Ventura (texto) e Luís Rendas (foto)







ARRÁBIDA, O SENHOR DAS CHAGAS
E A CENTRALIDADE ESPIRITUAL
DE SESIMBRA
(1ª parte)

 

            Apresentei no passado dia 24 de Julho, na igreja da Misericórdia de Sesimbra, uma conferência intitulada “A Arrábida, o Senhor das Chagas e a Centralidade Espiritual de Sesimbra”. Nesse acto de cultura e de culto, tive a honra de ser acompanhado pela dra. Maria Barroso Soares (que declamou poemas de frei Agostinho da Cruz, de Sebastião da Gama e do padre Manuel Marques) e pela cantora Teresa Salgueiro (que cantou uma das elegias do santo frade arrábido e um poema de sua autoria). Encantaram-nos, cativaram-nos, enalteceram-nos e, por isso, o agradecimento que lhes dirigi será sempre insuficiente; só Deus lhes saberá retribuir…

            A conferência não teria sido, todavia, o que foi sem os contributos de quem a organizou e a presença de quantos tornaram escassa a centena e meia de lugares disponíveis. Bem hajam, pois, o padre Rodrigo Mendes (verdadeiro motor deste evento e do concerto de Teresa Salgueiro, a 25/7, na renovada fortaleza), a Câmara Municipal e a Santa Casa da Misericórdia. Muito agradeço ainda a presença calorosa do senhor bispo D. Gilberto Canavarro dos Reis, de monsenhor José Lobato e de outros membros do presbitério diocesano (entre eles, os padres Manuel Silva e Luís de Matos Ferreira, de Sesimbra e de Azeitão), dos presidentes da Cáritas e da Fundação Pro Dignitate, dos amigos e colegas de profissão e de investigação, dos sesimbrenses e amigos de Sesimbra e da Arrábida que, mais uma vez, mostraram quanto amam a sua terra e a sua cultura. A sua presença honrou-me e comoveu-me, dizendo que a esperança é possível.

            Apesar de já ter publicado trechos da minha investigação sobre a sacralidade da Arrábida, nomeadamente no ensaio “O Eixo e a Árvore” (editado em Fevereiro deste ano com fundos estatais pela Apenas Livros, de Lisboa), e de estar para breve a edição em publicações científicas de estudos sobre a geografia sacra da serra, os aspectos históricos da devoção ao Senhor das Chagas e a poesia religiosa de Sebastião da Gama, julgo que a melhor maneira de sublinhar a minha gratidão será devolver aos sesimbrenses e arrábidos pelo menos uma parcela do texto que li em vésperas de Sant’ Iago Maior no santuário das Chagas e de Sesimbra, antecipando o livro que se vai construindo. Publico hoje a primeira parte, que terá continuação.

 

*

            Quem desce a Sesimbra, desce a uma terra sacralizada. Embora, de há algumas décadas a esta parte, se venha considerando apenas como estância de turismo, dela tinham outro entendimento os homens que a viam como base ou entreposto de navegação e pesca, que nela fabricaram o garum na época romana, que aí levantaram uma ermida a São Sebastião e hospitais ao Santo Espírito. Primeiro Castelo e depois Ribeira, esta vila está no centro de um vasto território numinoso que se integrava totalmente na sua circunscrição e administração municipal até ao fatídico ano de 1759. Quem traçar com régua uma linha entre os dois santuários femininos mais significativos da região – a Senhora do Cabo e a Senhora da Arrábida –, verificará isso mesmo. O vale de Sesimbra, que sobe da praia até às proximidades de Santana, está rigorosamente no centro, corta a meio esse segmento de recta onde, talvez por artes de geomancia, da Idade do Ferro ao século XVI, se implantaram vários marcos religiosos. É, portanto, a cabeça, a capital, dessa cordilheira sagrada a que os homens ao longo da história foram dando vários nomes e que nós hoje chamamos Arrábida.

            Essa centralidade é mais evidente quando ligamos as duas ermidas da Memória e verificamos o que está no centro; a homonímia dos dois pequeníssimos oratórios que assinalam locais de manifestação do sagrado exprime a ligação simbólica entre dois lugares santos, decerto anterior ao cristianismo, reforçada pela dupla lenda de Hildebrando, na qual se diz que esse mercador inglês assistiu do seu barco à subida na Pedra Mua de uma burra carregando uma imagem mariana, antes de ser protagonista da descoberta do sítio escolhido por outra imagem da Virgem Maria para ficar. Se nos deslocarmos um pouco mais para sul veremos, também, que entre os lugares onde se cultuou o Senhor dos Navegantes (na Chã do mesmo nome) e onde se reza ao Senhor dos Aflitos (no eremitério franciscano) está Sesimbra, essa vila de pescadores ladeada e protegida por dois rochedos sagrados (os morros do Arcanzil, dois “arcanjos” petrificados, diz-se), cada um deles sinalizando santuários pré-cristãos situados nas falésias (um deles fenício ou púnico, na Lapa da Cova). Sesimbra, no seu vale, entre o Castelo, Santana e a Ribeira, é assim uma terra do meio, o eixo de uma parcela de mundo que na Antiguidade se denominava Akra Barbarion ou Cempsicum Iugum. No centro dela situa-se uma pequena capela onde há quase cinco séculos se venera o Senhor Jesus das Chagas. É uma espécie de sucessora do oratório existente no topo poente do Campo da Misericórdia e, sobretudo, o espelho dessa Pedra Alta que, segundo indiciam palavras do padre Carlos Veríssimo, foi o primeiro altar da localidade, ou seja, um lugar de culto ancestral.

            A cronologia do processo de sacralização deste território é difícil de determinar, mas decerto imemorial. Se há indícios materiais que parecem pôr o seu início na época das primeiras sedentarizações neolíticas, inequívocas só as evidências toponímicas e artefactuais situadas na proto-história, num período em que se acentua – por via fenícia/púnica – o carácter mediterrânico e semita da sua cultura e da sua língua. Terá sido nessa época que, de um modo mais claro, o vazio de um “campo aberto” (br br’) e a altitude de uma “serra grande” (hr rb da) se impuseram aos autóctones e viajantes. Passaram então a ser valorizados como “campo de oração” (br brk), como “serra dos áugures” (hr bad) ou “monte onde se presta culto” (hr obd), completando e contrapondo a finisterra, “falésia alta/funda” ou “falésia do Inferno”, o Espichel (shpi sh’l). A serra, em sentido lato, foi assim sacralizada no seu todo, como templo ou santuário total, sem edifícios cultuais. Era esse o paradigma cultural e cultual semita, no qual os templos se situavam ao ar livre ou em acidentes naturais significativos, em geral espaços “vasto[s] e descoberto[s], – a área sagrada – não se confinando ao sítio restrito onde as divindades se encontravam representadas, como acontecia entre os egípcios, gregos ou romanos”, como afirma Mário Varela Gomes. Tal leitura do território (e da paisagem, poderia dizer anacronicamente) não mais se desfez, progredindo ao longo de mais de vinte séculos. Sofreu reinterpretações, mutações e enriquecimentos, mas as várias aparências civilizacionais encontraram sempre expressão para a sua essência ancestral. O processo não está ainda terminado. Creio que nunca o estará.

            A actividade humana desenvolvida no território arrábido não impediu a sacralização do espaço barbárico e dos seus elementos, embora fosse valorizado como lugar alto e deserto. Estruturou-se uma sábia hierarquização dos lugares. Inclusive nos locais onde decorria com maior intensidade a vivência económica e mundana, nunca se terá dispensado a presença do divino. Tal equilíbrio não se deve estranhar, pois nas sociedades primigénias, como é sabido, o sagrado e o profano não se podem separar nem dissociar por completo. Como refere José Fernández Arenas, nas culturas antigas o divino é a única realidade válida, pois nelas o humano ou terreno é tão só o seu espelho ou imagem, o seu substituto.

            Sesimbra, enquanto povoação mais importante, é um bom exemplo dessa repartição. Basta pensarmos na sua Idade Média. Estruturou-se em dois núcleos distintos e complementares, com funções diferentes: no alto de um cabeço aplainado, situavam-se o castelo e a vila amuralhada, sede municipal e paroquial; junto da praia, na ribeira, desenvolvia-se a actividade pesqueira e comercial. Nenhum desses espaços dispensou a presença de Deus, fosse pela presença de edifícios paroquiais, fosse pela edificação de estruturas devocionais ou assistenciais. Também os núcleos mais importantes, embora secundários, e as vias mais significativas, em parte relacionadas com rotas de peregrinação, foram protegidas por locais de culto. Assim foi entre o século XII e os séculos XVI-XVII. Penso que não terá sido muito diferente nos largos séculos anteriores.

            Não é, assim, possível entender a sacralidade da cordilheira da Arrábida sem atendermos às suas características físicas e aos movimentos de confronto, afastamento e aproximação suscitados, ao longo da sua extensa ocupação humana, pelos elementos naturais que a definem e constituem. Cortina montanhosa – entre as altas falésias do Cabo Espichel e as portas da cidade de Setúbal, entre Alfarim e Sesimbra, Azeitão e o Portinho –, destaca-se enquanto elevação que vence, em simultâneo, o oceano (a sul e poente) e as terras baixas e arenosas (a norte e nascente). Nela se opõem, sem se excluírem, o mar e a terra, a praia e a montanha, o alto e o baixo, a segurança e a insegurança, o fixo e o movediço, a elevação e a submersão, a ascensão e a descensão, a proximidade e a distância em relação aos astros e ao empíreo. Se considerarmos a geografia humana além da física, teremos ainda a oposição entre o povoado e o inabitado que, de um ponto de vista simbólico e religioso, se transforma num recontro divisor, inquietante e expansivo entre a vida religiosa, dirigida à divindade, e o labor e lazer existenciais, traduzidos em práticas exclusivamente mundanas.

            A Arrábida é, portanto, um espaço que exige escolhas, por vezes radicais, traduzidas em movimentos interiores e exteriores. Tal confronto, sempre dilemático, teve expressão no entendimento da paisagem e, sobretudo, no povoamento do território. Resultou na presença humana sedentária, desde épocas muito recuadas, sobretudo proto-históricas, nalguns cumes estrategicamente privilegiados e na preservação de um longo espaço escassamente habitado, quase desértico, correspondendo a montes e planaltos com menores ou inexistentes condições de habitabilidade e/ou de mais difícil acesso, logo bastante significativos de um ponto de vista ritual e simbólico. As praias foram deixadas às comunidades piscatórias e a outras actividades marítimas ou mercantis. A Deus (ou aos deuses) deixou-se tudo o resto – o que não inviabilizou o estabelecimento na “pré-Arrábida” de habitats menos significativos, geralmente associados a vias de comunicação ou de peregrinação, decerto muito antigas.

            Se os caminhos de ligação entre as localidades principais ou de acesso aos santuários deram origem a pequenas povoações e quintas (muitas delas protegidas por lugares de culto secundários, ou a eles associadas), as rotas de subida/acesso a Deus fizeram nascer construções religiosas que consagraram a deslocação/peregrinação aos lugares sagrados e, sobretudo, indicaram e sublinharam a subida sempre exigente, como via privilegiada de acesso à divindade, não só para comunicar com ela, mas para tornar também possível uma aproximação em relação ao Paraíso, ou seja, à santidade. Essas vias foram e são-nos indicadas pelas lendas correntes na região (talvez parcelas de um grande mito original) e, também, pela ubiquação de vários santuários aí existentes ou de que há vestígios materiais ou imateriais.

 
(publicado no jornal RAIO DE LUZ, de Sesimbra; continua)