Planta de Sesimbra na segunda metade do século XVI.
terça-feira, 23 de setembro de 2014
quinta-feira, 18 de setembro de 2014
terça-feira, 16 de setembro de 2014
Ruy Ventura (texto) e Luís Rendas (foto)
E A CENTRALIDADE ESPIRITUAL
DE SESIMBRA
(1ª parte)
Apresentei no passado dia 24 de Julho, na igreja da Misericórdia de Sesimbra,
uma conferência intitulada “A Arrábida, o Senhor das Chagas e a Centralidade
Espiritual de Sesimbra”. Nesse acto de cultura e de culto, tive a honra de ser
acompanhado pela dra. Maria Barroso Soares (que declamou poemas de frei
Agostinho da Cruz, de Sebastião da Gama e do padre Manuel Marques) e pela
cantora Teresa Salgueiro (que cantou uma das elegias do santo frade arrábido e
um poema de sua autoria). Encantaram-nos, cativaram-nos, enalteceram-nos e, por
isso, o agradecimento que lhes dirigi será sempre insuficiente; só Deus lhes
saberá retribuir…
A conferência não teria sido,
todavia, o que foi sem os contributos de quem a organizou e a presença de
quantos tornaram escassa a centena e meia de lugares disponíveis. Bem hajam,
pois, o padre Rodrigo Mendes (verdadeiro motor deste evento e do concerto de
Teresa Salgueiro, a 25/7, na renovada fortaleza), a Câmara Municipal e a Santa
Casa da Misericórdia. Muito agradeço ainda a presença calorosa do senhor bispo
D. Gilberto Canavarro dos Reis, de monsenhor José Lobato e de outros membros do
presbitério diocesano (entre eles, os padres Manuel Silva e Luís de Matos
Ferreira, de Sesimbra e de Azeitão), dos presidentes da Cáritas e da Fundação
Pro Dignitate, dos amigos e colegas de profissão e de investigação, dos
sesimbrenses e amigos de Sesimbra e da Arrábida que, mais uma vez, mostraram
quanto amam a sua terra e a sua cultura. A sua presença honrou-me e comoveu-me,
dizendo que a esperança é possível.
Apesar de já ter publicado trechos
da minha investigação sobre a sacralidade da Arrábida, nomeadamente no ensaio
“O Eixo e a Árvore” (editado em Fevereiro deste ano com fundos estatais pela
Apenas Livros, de Lisboa), e de estar para breve a edição em publicações
científicas de estudos sobre a geografia sacra da serra, os aspectos históricos
da devoção ao Senhor das Chagas e a poesia religiosa de Sebastião da Gama,
julgo que a melhor maneira de sublinhar a minha gratidão será devolver aos
sesimbrenses e arrábidos pelo menos uma parcela do texto que li em vésperas de
Sant’ Iago Maior no santuário das Chagas e de Sesimbra, antecipando o livro que
se vai construindo. Publico hoje a primeira parte, que terá continuação.
*
Quem
desce a Sesimbra, desce a uma terra sacralizada. Embora, de há algumas décadas
a esta parte, se venha considerando apenas como estância de turismo, dela tinham outro entendimento os homens que a
viam como base ou entreposto de navegação e pesca, que nela fabricaram o garum na época romana, que aí levantaram
uma ermida a São Sebastião e hospitais ao Santo Espírito. Primeiro Castelo e depois Ribeira, esta vila está no centro de um vasto território numinoso
que se integrava totalmente na sua circunscrição e administração municipal até
ao fatídico ano de 1759. Quem traçar com régua uma linha entre os dois
santuários femininos mais significativos da região – a Senhora do Cabo e a
Senhora da Arrábida –, verificará isso mesmo. O vale de Sesimbra, que sobe da
praia até às proximidades de Santana, está rigorosamente no centro, corta a
meio esse segmento de recta onde, talvez por artes de geomancia, da Idade do
Ferro ao século XVI, se implantaram vários marcos religiosos. É, portanto, a
cabeça, a capital, dessa cordilheira sagrada a que os homens ao longo da
história foram dando vários nomes e que nós hoje chamamos Arrábida.
Essa
centralidade é mais evidente quando ligamos as duas ermidas da Memória e verificamos o que está no
centro; a homonímia dos dois pequeníssimos oratórios que assinalam locais de
manifestação do sagrado exprime a ligação simbólica entre dois lugares santos,
decerto anterior ao cristianismo, reforçada pela dupla lenda de Hildebrando, na
qual se diz que esse mercador inglês assistiu do seu barco à subida na Pedra
Mua de uma burra carregando uma imagem mariana, antes de ser protagonista da
descoberta do sítio escolhido por outra imagem da Virgem Maria para ficar. Se
nos deslocarmos um pouco mais para sul veremos, também, que entre os lugares
onde se cultuou o Senhor dos Navegantes (na Chã
do mesmo nome) e onde se reza ao Senhor dos Aflitos (no eremitério franciscano)
está Sesimbra, essa vila de pescadores ladeada e protegida por dois rochedos
sagrados (os morros do Arcanzil, dois
“arcanjos” petrificados, diz-se),
cada um deles sinalizando santuários pré-cristãos situados nas falésias (um
deles fenício ou púnico, na Lapa da Cova). Sesimbra, no seu vale, entre o
Castelo, Santana e a Ribeira, é assim uma terra
do meio, o eixo de uma parcela de mundo que na Antiguidade se denominava Akra Barbarion ou Cempsicum Iugum. No centro dela situa-se uma pequena capela onde há
quase cinco séculos se venera o Senhor Jesus das Chagas. É uma espécie de
sucessora do oratório existente no topo poente do Campo da Misericórdia e, sobretudo, o espelho dessa Pedra Alta que, segundo indiciam palavras
do padre Carlos Veríssimo, foi o primeiro altar da localidade, ou seja, um
lugar de culto ancestral.
A
cronologia do processo de sacralização deste território é difícil de
determinar, mas decerto imemorial. Se há indícios materiais que parecem pôr o
seu início na época das primeiras sedentarizações neolíticas, inequívocas só as
evidências toponímicas e artefactuais situadas na proto-história, num período
em que se acentua – por via fenícia/púnica – o carácter mediterrânico e semita
da sua cultura e da sua língua. Terá sido nessa época que, de um modo mais
claro, o vazio de um “campo aberto” (br br’) e a altitude de uma “serra grande” (hr rb da) se impuseram aos autóctones e viajantes. Passaram então a
ser valorizados como “campo de oração”
(br brk), como “serra dos áugures” (hr bad)
ou “monte onde se presta culto” (hr obd), completando e contrapondo a
finisterra, “falésia alta/funda” ou “falésia do Inferno”, o Espichel (shpi sh’l). A serra, em sentido lato, foi assim
sacralizada no seu todo, como templo ou santuário total, sem edifícios
cultuais. Era esse o paradigma cultural e cultual semita, no qual os templos se
situavam ao ar livre ou em acidentes naturais significativos, em geral espaços
“vasto[s] e descoberto[s], – a área
sagrada – não se confinando ao sítio restrito onde as divindades se encontravam
representadas, como acontecia entre os egípcios, gregos ou romanos”, como
afirma Mário Varela Gomes. Tal leitura do território (e da paisagem, poderia
dizer anacronicamente) não mais se desfez, progredindo ao longo de mais de
vinte séculos. Sofreu reinterpretações, mutações e enriquecimentos, mas as
várias aparências civilizacionais encontraram sempre expressão para a sua
essência ancestral. O processo não está ainda terminado. Creio que nunca o
estará.
A actividade
humana desenvolvida no território arrábido não impediu a sacralização do espaço
barbárico e dos seus elementos, embora fosse valorizado como lugar alto e
deserto. Estruturou-se uma sábia hierarquização dos lugares. Inclusive nos
locais onde decorria com maior intensidade a vivência económica e mundana,
nunca se terá dispensado a presença do divino. Tal equilíbrio não se deve
estranhar, pois nas sociedades primigénias, como é sabido, o sagrado e o
profano não se podem separar nem dissociar por completo. Como refere José
Fernández Arenas, nas culturas antigas o divino é a única realidade válida,
pois nelas o humano ou terreno é tão só o seu espelho ou imagem, o seu substituto.
Sesimbra,
enquanto povoação mais importante, é um bom exemplo dessa repartição. Basta
pensarmos na sua Idade Média. Estruturou-se em dois núcleos distintos e
complementares, com funções diferentes: no alto de um cabeço aplainado,
situavam-se o castelo e a vila amuralhada, sede municipal e paroquial; junto da
praia, na ribeira, desenvolvia-se a actividade pesqueira e comercial. Nenhum
desses espaços dispensou a presença de Deus, fosse pela presença de edifícios
paroquiais, fosse pela edificação de estruturas devocionais ou assistenciais.
Também os núcleos mais importantes, embora secundários, e as vias mais
significativas, em parte relacionadas com rotas de peregrinação, foram
protegidas por locais de culto. Assim foi entre o século XII e os séculos XVI-XVII.
Penso que não terá sido muito diferente nos largos séculos anteriores.
Não é,
assim, possível entender a sacralidade da cordilheira da Arrábida sem
atendermos às suas características físicas e aos movimentos de confronto,
afastamento e aproximação suscitados, ao longo da sua extensa ocupação humana,
pelos elementos naturais que a definem e constituem. Cortina montanhosa – entre
as altas falésias do Cabo Espichel e as portas da cidade de Setúbal, entre
Alfarim e Sesimbra, Azeitão e o Portinho –, destaca-se enquanto elevação que
vence, em simultâneo, o oceano (a sul e poente) e as terras baixas e arenosas
(a norte e nascente). Nela se opõem, sem se excluírem, o mar e a terra, a praia
e a montanha, o alto e o baixo, a segurança e a insegurança, o fixo e o
movediço, a elevação e a submersão, a ascensão e a descensão, a proximidade e a
distância em relação aos astros e ao empíreo. Se considerarmos a geografia
humana além da física, teremos ainda a oposição entre o povoado e o inabitado
que, de um ponto de vista simbólico e religioso, se transforma num recontro
divisor, inquietante e expansivo entre a vida religiosa, dirigida à divindade,
e o labor e lazer existenciais, traduzidos em práticas exclusivamente mundanas.
A
Arrábida é, portanto, um espaço que exige escolhas, por vezes radicais,
traduzidas em movimentos interiores e exteriores. Tal confronto, sempre
dilemático, teve expressão no entendimento da paisagem e, sobretudo, no
povoamento do território. Resultou na presença humana sedentária, desde épocas
muito recuadas, sobretudo proto-históricas, nalguns cumes estrategicamente
privilegiados e na preservação de um longo espaço escassamente habitado, quase
desértico, correspondendo a montes e planaltos com menores ou inexistentes
condições de habitabilidade e/ou de mais difícil acesso, logo bastante
significativos de um ponto de vista ritual e simbólico. As praias foram
deixadas às comunidades piscatórias e a outras actividades marítimas ou
mercantis. A Deus (ou aos deuses) deixou-se tudo o resto – o que não
inviabilizou o estabelecimento na “pré-Arrábida”
de habitats menos significativos,
geralmente associados a vias de comunicação ou de peregrinação, decerto muito
antigas.
Se os
caminhos de ligação entre as localidades principais ou de acesso aos santuários
deram origem a pequenas povoações e quintas (muitas delas protegidas por
lugares de culto secundários, ou a eles associadas), as rotas de subida/acesso
a Deus fizeram nascer construções religiosas que consagraram a
deslocação/peregrinação aos lugares sagrados e, sobretudo, indicaram e
sublinharam a subida sempre exigente, como via privilegiada de acesso à
divindade, não só para comunicar com ela, mas para tornar também possível uma
aproximação em relação ao Paraíso, ou seja, à santidade. Essas vias foram e
são-nos indicadas pelas lendas correntes na região (talvez parcelas de um
grande mito original) e, também, pela ubiquação de vários santuários aí
existentes ou de que há vestígios materiais ou imateriais.
(publicado no jornal RAIO DE LUZ, de Sesimbra; continua)
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