O SENHOR DAS CHAGAS
E O CERNE DA ARRÁBIDA
(ARRÁBIDA
SACRA - 3)
Ruy
Ventura
(conclusão
dos textos anteriores)
Da
atenção à Providência legível em vários símbolos existentes em Sesimbra, não
podemos alhear a devoção ao Senhor das Chagas. Será bom recordarmos a sua
imagem em procissão, no dia 4 de Maio, data em que se recorda, mais do que o
seu achamento na Pedra Alta, a
descoberta do seu braço que não ardia, porque era fonte de esperança enquanto
materialização do membro superior do Deus
dos Exércitos. Com a Sua mão, era esse braço que dava a vitória ao povo de
Israel, simbolizando a força, o poder, o socorro prometido, a protecção e a
justiça. A chegada do Senhor à praia, como porto seguro, mostra-nos o mar como
caminho escolhido por Deus, onde a caminhada não deixa pegadas, como refere o
salmo 77. Recorda-nos sobretudo o Santo Lenho, essa “madeira de misericórdia” que, segundo conta a Lenda Dourada, nasceu de um ramo da árvore do Paraíso plantado por
Seth sobre o túmulo de Adão e, depois de muitas andanças, acabou por vogar
sobre as águas, aportando de modo milagroso à costa israelita, pois tinha como
destino ser a cruz onde morreria para ressuscitar Jesus de Nazaré.
Para
entendermos totalmente a Arrábida como região sagrada, centrada em Sesimbra e
na sua devoção ao Senhor das Chagas, é preciso lembrar a imagem dolorosa e
florida que percorre anualmente as ruas da vila nesse dia. Tudo se passa no
centro desse eixo traçado entre duas Memórias; e, para que haja liberdade na
saudade, como queria frei Agostinho, é preciso descobrirmos no seu centro a
esperança. Ouçamos Teixeira de Pascoaes, que via no frade de Ponte da Barca o
mais alto valor da nossa poesia e, na Arrábida, o “Altar da Saudade”: “A
Arrábida é o Horeb da Saudade, o monte sagrado onde ela aparece, a vez
primeira, encarnada no seu divino ser. Esparsa em névoa // melancólica e
amorosa em Bernardim, Luís de Camões dá-lhe o sentido cósmico e profundo que em
Frei Agostinho da Cruz se diviniza. A névoa antiga condensou-se no espectro
camoniano da Natura, para amanhecer, em perfeita aurora espiritual, sobre os
ermos místicos da Arrábida. § A criatura elevou-se, enfim, ao Criador. Da
lembrança material em que o Universo se modela, saltou a luz da Esperança que o
redime. A Esperança é Deus, como a Lembrança é o homem e todas as cousas…”
A
cruz do Senhor das Chagas é dolorosa e florida. Falando ou não da Arrábida, Pascoaes
também a explica, sem trair, quanto a mim, a tradição portuguesa, que aprofunda
anagogicamente: “O sentimento saudoso da
Divindade imprime no nosso Cristianismo um colorido alegre e triste que o
destaca. Jesus aparece-nos, espectral // e plástico, pregado num madeiro em
flor, com raízes no âmago da terra. Pela flor evolada em perfume, a árvore cruz
atinge o infinito Azul; pela raiz, penetra na escuridão subterrânea. Nas
ramagens dos seus braços abertos está o Amor crucificado. A Cruz florescida em esperança
e enraizada na lembrança material, vede o próprio vulto da Saudade, cingindo
num abraço o amor-sacrifício que redime. A união da esperança à lembrança, do
espírito divino às suas formas decaídas ou materiais, porque, decaindo, adquire
presença tangível, capaz de ser possuída. […]”.
Imagem
terrestre da Jerusalém celeste, a Arrábida, centrada em Sesimbra, teria
necessariamente de ter no seu centro uma cruz dolorida e gloriosa. Trata-se de
um símbolo com duas faces, sintético. Lembro que esse signo máximo do
cristianismo representa, na leitura do escritor católico inglês G. K.
Chesterton, o mistério e a saúde: “embora
tenha no centro uma colisão e uma contradição, pode estender os seus quatro
braços para sempre, sem alterar a forma. Porque tem um paradoxo, no centro,
pode crescer sem mudar”. É, também, uma via luminosa e de testemunho, de
sangue e de redenção, árvore da vida, cruz-caminho que nos leva à luz e,
igualmente, uma analogia de totalização espacial, da união dos contrários e dos
quatro elementos.
A
cruz de Sesimbra, de onde pende uma impressionante escultura flamenga de Cristo
dando o último suspiro, quando sai em procissão mostra-nos a dor e o alento, o
sofrimento e a esperança, a morte e a ressurreição, a paixão e a aleluia.
Totalizando o espaço, exprime e totaliza também a vivência dele que, como
referi, exige uma assunção corporal e espiritual. É essa a via arrábida
expressa pelo seu território como um todo, como um sistema natural, cultural e
cultual. Iniciando-se na Pedra Alta ou nos arredores do Portinho, o percurso
tem sempre a mesma meta poliédrica: da vitória sobre o mal em Sant’ Iago matamouros à Consolação do Castelo,
ganhando o alento do Espírito, peregrinando como propõe a figura mítica do
filho de Zabedeu, lutando e dando testemunho como São Sebastião; da vitória
sobre os instintos, conseguida por Santa Margarida, à salvação atingida nos “arrabaldes” do Paraíso, onde se vive a
experiência do Amor Divino na construção de uma sapiência que chega a Deus
nunca desprezando os Homens e a bondade a exercer no mundo.
De
certo modo, tudo isto está presente na imagem do Senhor das Chagas saindo em
procissão. Talvez por isso seja frequente ver no seu cortejo delegações de
outras terras da região, prestando homenagem ao seu suserano. Às Chagas, à sua
madeira/lenho, à sua cruz de Quaresma e de Maio, de Paixão e descoberta, de dor
e redenção (que é ressurreição e ascensão), todos se rendem. Talvez porque
Sesimbra e o seu vale sejam o centro, o eixo simbólico, arborescente, de todo o
território arrábido, que vai de Memória a Memória, da Concepção à Cruz e à
eternização, do inferior ao Superior ou Supremo.
*
“Senhora do Tempo”, como diria Teresa
Salgueiro, a árvore que a Arrábida nos oferece é residência da “claridade celeste”, da “luz extasiada”, da “Pureza” e da “Paz”, sendo
ao mesmo tempo revelação/recordação de um mundo sensível ainda primordial e
criação de um universo supra-sensível, como escreveu Sebastião da Gama. “Serra toda pintada de Esperança”, é
expressão da divindade, antecâmara do Éden, como afirmou o mesmo autor nela
nascido. “Nobreza”, “força” e “sabedoria” dão-lhe a seiva que leva essa pequena semente (o “grão de mostarda” evangélico?) a
erguer-se como “tronco imenso” e,
depois, como “mastro” no “centro de um barco” onde todos navegamos
e, se bem entendo estas palavras da cantora, ergueremos os braços ao Senhor da
História e de toda a criação. Assim fazendo, passaremos da existência à vida.
Vencedora
do abismo, a serra de que Sesimbra é centro foi-se apresentando ao longo de
séculos enquanto espaço sublimado cuja sacralidade é um poliedro de que
desconhecemos ainda a totalidade das faces. Eixo, campo aberto e largo,
finisterra, deserto, fronteira, atalaia, lugar alto, templo, refúgio, protecção,
escada, purificação, despojamento, coluna, lugar de cruzamento e de síntese,
altar, mãe, árvore, a Arrábida é acima de tudo um eixo misterioso de Portugal.
O
confronto com esse mistério obrigou muitos dos que aqui moraram ou por aqui
passaram a exprimir a sua estranheza, o seu temor, a sua reverência a esta
imagem espelhada do divino. Todos discursos se angustiaram perante a sua
incerteza sublime. Ao longo de mais de dois mil anos, houve apenas aproximações
– e o que escrevo não é diferente. Usou-se de toda a força contra a nuvem
sagrada, de modo a dissipá-la, mas o livro escrito e a escrever terá sempre um
carácter paradoxal, porque o cerne da Arrábida é indizível, dizendo-se apenas
num silêncio aberto e contemplativo.
Houve
quem, subindo a escada celestial, visse na Arrábida a manifestação do fogo que
nada pode apagar, do sopro que não cessa, da sombra acolhedora, da altitude
imaterial, da síntese entre a esperança e a lembrança. Há quem, profanando a
serra, a veja apenas como lugar de turismo, fonte de lucro, palco de
espectáculos, origem de matérias-primas, terreno de afirmação egoísta ou
hedonista. Espero, sinceramente, que o caminho dos sesimbrenses e de quantos me
lêem se encontre com o pensamento de frei Agostinho da Cruz, radicado nas palavras
do Livro da Sabedoria. Se assim for,
e assim será, verão toda esta parcela de Portugal como um espelho, como uma
imagem espelhada, porque “na grandeza e
na beleza das criaturas / se contempla, por analogia, o seu Criador” (Sb
13, 5).
(publicado no jornal Raio de Luz, de Sesimbra)