terça-feira, 4 de novembro de 2014

Texto de Ruy Ventura e foto de Carlos Sargedas


O SENHOR DAS CHAGAS
E O CERNE DA ARRÁBIDA 


(ARRÁBIDA SACRA - 3)

Ruy Ventura




(conclusão dos textos anteriores)


            Da atenção à Providência legível em vários símbolos existentes em Sesimbra, não podemos alhear a devoção ao Senhor das Chagas. Será bom recordarmos a sua imagem em procissão, no dia 4 de Maio, data em que se recorda, mais do que o seu achamento na Pedra Alta, a descoberta do seu braço que não ardia, porque era fonte de esperança enquanto materialização do membro superior do Deus dos Exércitos. Com a Sua mão, era esse braço que dava a vitória ao povo de Israel, simbolizando a força, o poder, o socorro prometido, a protecção e a justiça. A chegada do Senhor à praia, como porto seguro, mostra-nos o mar como caminho escolhido por Deus, onde a caminhada não deixa pegadas, como refere o salmo 77. Recorda-nos sobretudo o Santo Lenho, essa “madeira de misericórdia” que, segundo conta a Lenda Dourada, nasceu de um ramo da árvore do Paraíso plantado por Seth sobre o túmulo de Adão e, depois de muitas andanças, acabou por vogar sobre as águas, aportando de modo milagroso à costa israelita, pois tinha como destino ser a cruz onde morreria para ressuscitar Jesus de Nazaré.
            Para entendermos totalmente a Arrábida como região sagrada, centrada em Sesimbra e na sua devoção ao Senhor das Chagas, é preciso lembrar a imagem dolorosa e florida que percorre anualmente as ruas da vila nesse dia. Tudo se passa no centro desse eixo traçado entre duas Memórias; e, para que haja liberdade na saudade, como queria frei Agostinho, é preciso descobrirmos no seu centro a esperança. Ouçamos Teixeira de Pascoaes, que via no frade de Ponte da Barca o mais alto valor da nossa poesia e, na Arrábida, o “Altar da Saudade”: “A Arrábida é o Horeb da Saudade, o monte sagrado onde ela aparece, a vez primeira, encarnada no seu divino ser. Esparsa em névoa // melancólica e amorosa em Bernardim, Luís de Camões dá-lhe o sentido cósmico e profundo que em Frei Agostinho da Cruz se diviniza. A névoa antiga condensou-se no espectro camoniano da Natura, para amanhecer, em perfeita aurora espiritual, sobre os ermos místicos da Arrábida. § A criatura elevou-se, enfim, ao Criador. Da lembrança material em que o Universo se modela, saltou a luz da Esperança que o redime. A Esperança é Deus, como a Lembrança é o homem e todas as cousas…
            A cruz do Senhor das Chagas é dolorosa e florida. Falando ou não da Arrábida, Pascoaes também a explica, sem trair, quanto a mim, a tradição portuguesa, que aprofunda anagogicamente: “O sentimento saudoso da Divindade imprime no nosso Cristianismo um colorido alegre e triste que o destaca. Jesus aparece-nos, espectral // e plástico, pregado num madeiro em flor, com raízes no âmago da terra. Pela flor evolada em perfume, a árvore cruz atinge o infinito Azul; pela raiz, penetra na escuridão subterrânea. Nas ramagens dos seus braços abertos está o Amor crucificado. A Cruz florescida em esperança e enraizada na lembrança material, vede o próprio vulto da Saudade, cingindo num abraço o amor-sacrifício que redime. A união da esperança à lembrança, do espírito divino às suas formas decaídas ou materiais, porque, decaindo, adquire presença tangível, capaz de ser possuída. […]”.
            Imagem terrestre da Jerusalém celeste, a Arrábida, centrada em Sesimbra, teria necessariamente de ter no seu centro uma cruz dolorida e gloriosa. Trata-se de um símbolo com duas faces, sintético. Lembro que esse signo máximo do cristianismo representa, na leitura do escritor católico inglês G. K. Chesterton, o mistério e a saúde: “embora tenha no centro uma colisão e uma contradição, pode estender os seus quatro braços para sempre, sem alterar a forma. Porque tem um paradoxo, no centro, pode crescer sem mudar”. É, também, uma via luminosa e de testemunho, de sangue e de redenção, árvore da vida, cruz-caminho que nos leva à luz e, igualmente, uma analogia de totalização espacial, da união dos contrários e dos quatro elementos.
            A cruz de Sesimbra, de onde pende uma impressionante escultura flamenga de Cristo dando o último suspiro, quando sai em procissão mostra-nos a dor e o alento, o sofrimento e a esperança, a morte e a ressurreição, a paixão e a aleluia. Totalizando o espaço, exprime e totaliza também a vivência dele que, como referi, exige uma assunção corporal e espiritual. É essa a via arrábida expressa pelo seu território como um todo, como um sistema natural, cultural e cultual. Iniciando-se na Pedra Alta ou nos arredores do Portinho, o percurso tem sempre a mesma meta poliédrica: da vitória sobre o mal em Sant’ Iago matamouros à Consolação do Castelo, ganhando o alento do Espírito, peregrinando como propõe a figura mítica do filho de Zabedeu, lutando e dando testemunho como São Sebastião; da vitória sobre os instintos, conseguida por Santa Margarida, à salvação atingida nos “arrabaldes” do Paraíso, onde se vive a experiência do Amor Divino na construção de uma sapiência que chega a Deus nunca desprezando os Homens e a bondade a exercer no mundo.
            De certo modo, tudo isto está presente na imagem do Senhor das Chagas saindo em procissão. Talvez por isso seja frequente ver no seu cortejo delegações de outras terras da região, prestando homenagem ao seu suserano. Às Chagas, à sua madeira/lenho, à sua cruz de Quaresma e de Maio, de Paixão e descoberta, de dor e redenção (que é ressurreição e ascensão), todos se rendem. Talvez porque Sesimbra e o seu vale sejam o centro, o eixo simbólico, arborescente, de todo o território arrábido, que vai de Memória a Memória, da Concepção à Cruz e à eternização, do inferior ao Superior ou Supremo.

*

            “Senhora do Tempo”, como diria Teresa Salgueiro, a árvore que a Arrábida nos oferece é residência da “claridade celeste”, da “luz extasiada”, da “Pureza” e da “Paz”, sendo ao mesmo tempo revelação/recordação de um mundo sensível ainda primordial e criação de um universo supra-sensível, como escreveu Sebastião da Gama. “Serra toda pintada de Esperança”, é expressão da divindade, antecâmara do Éden, como afirmou o mesmo autor nela nascido. “Nobreza”, “força” e “sabedoria” dão-lhe a seiva que leva essa pequena semente (o “grão de mostarda” evangélico?) a erguer-se como “tronco imenso” e, depois, como “mastro” no “centro de um barco” onde todos navegamos e, se bem entendo estas palavras da cantora, ergueremos os braços ao Senhor da História e de toda a criação. Assim fazendo, passaremos da existência à vida.
            Vencedora do abismo, a serra de que Sesimbra é centro foi-se apresentando ao longo de séculos enquanto espaço sublimado cuja sacralidade é um poliedro de que desconhecemos ainda a totalidade das faces. Eixo, campo aberto e largo, finisterra, deserto, fronteira, atalaia, lugar alto, templo, refúgio, protecção, escada, purificação, despojamento, coluna, lugar de cruzamento e de síntese, altar, mãe, árvore, a Arrábida é acima de tudo um eixo misterioso de Portugal.
            O confronto com esse mistério obrigou muitos dos que aqui moraram ou por aqui passaram a exprimir a sua estranheza, o seu temor, a sua reverência a esta imagem espelhada do divino. Todos discursos se angustiaram perante a sua incerteza sublime. Ao longo de mais de dois mil anos, houve apenas aproximações – e o que escrevo não é diferente. Usou-se de toda a força contra a nuvem sagrada, de modo a dissipá-la, mas o livro escrito e a escrever terá sempre um carácter paradoxal, porque o cerne da Arrábida é indizível, dizendo-se apenas num silêncio aberto e contemplativo.

            Houve quem, subindo a escada celestial, visse na Arrábida a manifestação do fogo que nada pode apagar, do sopro que não cessa, da sombra acolhedora, da altitude imaterial, da síntese entre a esperança e a lembrança. Há quem, profanando a serra, a veja apenas como lugar de turismo, fonte de lucro, palco de espectáculos, origem de matérias-primas, terreno de afirmação egoísta ou hedonista. Espero, sinceramente, que o caminho dos sesimbrenses e de quantos me lêem se encontre com o pensamento de frei Agostinho da Cruz, radicado nas palavras do Livro da Sabedoria. Se assim for, e assim será, verão toda esta parcela de Portugal como um espelho, como uma imagem espelhada, porque “na grandeza e na beleza das criaturas / se contempla, por analogia, o seu Criador” (Sb 13, 5).

(publicado no jornal Raio de Luz, de Sesimbra)